Inezita Barroso, em 1954, cantava a saga de um pinguço na clássica – e divertida – Moda da Pinga (também conhecida como Marvada Pinga). “Trago um garrafão que venho chupando/ Venho pros caminho, venho trupicando/ Chifrando os barranco, venho cambetiando/ e no lugar que eu caio já fico roncando, oi lá…” E o cachaceiro continua a relatar seus reveses causados pela água que passarinho não bebe. “Cada vez que eu caio, caio diferente/ Meaço pra trás e caio pra frente/ Caio devagar, caio de repente/ Vô de corrupio, vou deretamente/ Mas sendo de pinga, eu caio contente…”
É impossível não rir dessas aventuras, em trovas e versos do mais genuíno caipirês. Mas a canção fala de uma realidade que também é triste e que, no entanto, tem a tradição de ganhar um tratamento condescendente na música, não importa de qual gênero seja. A bebida como válvula de escape, como fuga de problemas, como culpada por atos impensados, como diversão mais do que lícita está em inumeráveis sambas, hits sertanejos, monumentos da MPB. E ninguém parece se incomodar muito com isso. Todos acham essa apologia normal, sem a patrulha que outros temas sofrem.
Nos anos 1990, o pessoal da banda Planet Hemp, liderada por Marcelo D2, saiu de um show direto para a cadeia sob a acusação de fazer propaganda para o consumo de maconha. De lá para cá, o debate a respeito da legalização da erva avançou. Até mesmo figuras proeminentes, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ministro do STF Luís Roberto Barroso se posicionam publicamente a favor da legalização da compra e porte de pequenas porções de maconha. Já quanto à bebida, houve um movimento inverso.
A publicidade de bebidas alcoólicas ganhou conselhos para “se beber com moderação”. Leis mais rigorosas tentam inibir as pessoas de dirigirem sob efeito do álcool. Afinal, calcula-se que metade dos acidentes que acontecem todos os anos no Brasil tenha alguma relação com bebida. Nos EUA, onde há locais em que não se é permitido sequer portar uma garrafa de bebida alcoólica em público, mais de 10 mil pessoas morrem todos os anos por motoristas embriagados. Há motivos mais que suficientes, portanto, para que a bebida preocupe mais que a maconha. Mas não é o que vemos.
As canções não são as culpadas pelo pessoal enxugar garrafas e mais garrafas por aí. Pensar assim seria simplificar o problema. A questão é que essa mesma lógica nem sempre vale para outros temas. Os mais recentes episódios em que a arte é acusada de influenciar comportamentos indecorosos, por exemplo, demonstram que para muita gente exposições, filmes, performances influem negativamente aqueles quem mantêm contato com tais produtos. Tal concepção não se aplica às músicas, várias delas de enorme sucesso entre jovens e até crianças, mesmo que tratem o alcoolismo como algo banal, como distração inocente.
Um dos maiores sucessos do cantor Gusttavo Lima fala de um sujeito que foi ao médico e recebeu a recomendação de que a saúde está ruim por conta do excesso de bebida. A resposta é curta e grossa, em forma de refrão repetido à exaustão por multidões pelo País: “Eu vou morrer, mas eu não paro de beber.” Em outra composição, conhecida na voz da dupla Munhoz & Mariano, uma mulher pega um carro e vai para a balada beber: “E cai sentada no colo, deitada no chão, pagando calcinha, perdendo a noção. E o copo? O copo ainda tá na mão.”
A dor de cotovelo, a desilusão amorosa são motivos comuns para afogar as mágoas. Duplas como Humberto & Ronaldo e Jorge & Matheus fazem sucesso com canções que contêm versos como “desculpe o cheiro forte de bebida” ou “canto, bebo e choro”. Mas considerar o pileque como algo positivo é mais frequente do que se imagina. A dupla Gino & Geno anunciava em uma canção popular: “Bebo pra carai, bebo pra carai”. Já Rick & Rener faziam uma lista com vários tipos de cachaceiros, vangloriando-se por fim: “Nós trupica mas não cai”.
A bebida alcoólica como mote não é exclusividade dos sertanejos, claro. O brega Reginaldo Rossi anunciava em sua conhecida Garçon que ia tomar todas, que ia se embriagar. Tom Jobim (que bebia bastante), Vinicius de Moraes (que bebia ainda mais), Miúcha e Toquinho embalaram um clássico da MPB em que iam levando a vida, apesar de “toda a Brahma”. Já em Regra Três, o Poetinha vaticina que o homem que abusou da paciência da mulher terá um destino certo: “E uma bebida por perto, porque você pode estar certo que vai chorar”.
Sambas, marchinhas de Carnaval, axé music. Não há gênero que escape de emprestar certo glamour ao ato de beber. De Zeca Pagodinho a Raul Seixas, o álcool integra imagens públicas de artistas renomados. E salvo raríssimas exceções, quase ninguém se incomoda com isso. Deveria haver uma cruzada contra tais apologias? Em minha opinião, não. Afinal, são criações artísticas, livres para tratar dos temas que bem entenderem, com a abordagem que desejarem. Mas acredito que menos hipocrisia quanto a outros assuntos, que não recebem tratamento igualmente condescendente, também seria salutar. Não vale apontar o dedo para os outros com um copo de bebida na mão.
Magnífica visão! Inspirador