Em outubro de 2002, a imprensa nacional estava às voltas com materiais especiais sobre o centenário de nascimento de um de nossos maiores poetas, o mineiro Carlos Drummond de Andrade. Livros que eram lançados, memórias de amigos que eram recuperadas, trechos de entrevistas antigas com o escritor, tudo gerava interesse em torno do nome do filho mais notório de Itabira. Naquele momento, eu tinha poucos meses de redação em O Popular, mas fui incumbido da tarefa de produzir algo diferenciado sobre o escritor.
Na ocasião, eu estava fazendo meu mestrado em Estudos Literários na UFG e era aluno da professora Maria Zaira Turchi, uma referência na área de estudos do imaginário. Ela, com competência e leveza, ensinava suas turmas a ingressar nos mistérios de uma obra literária por outras portas, menos óbvias e mais lúdicas, buscando dentro de nós mesmos e de nossas memórias pistas para determinadas interpretações, rastros de visões de mundo que ajudassem a explicar o universo literário em que nos envolvíamos.
““Sim, pois não dona Celenita. Em que posso ajudá-la?”, perguntei, inocente, sem saber ainda que era justamente o contrário. Ela é que me ajudaria, de forma espontânea e generosa. “Zaira me disse que você está escrevendo uma reportagem sobre Carlos Drummond de Andrade.” “Sim, estou.” “Pois é, recebi uma carta dele uma vez.””
Ao saber, por um comentário fortuito, que eu estava trabalhando na matéria sobre Drummond, ela sorriu, mas não disse nada. Alguns dias depois, recebi um telefonema. Do outro lado, uma voz doce se apresentou: “Meu nome é Celenita Turchi, sou mãe de sua professora Zaira.” “Sim, pois não, dona Celenita. Em que posso ajudá-la?”, perguntei, inocente, sem saber ainda que era justamente o contrário. Ela é que me ajudaria, de forma espontânea e generosa. “Zaira me disse que você está escrevendo uma reportagem sobre Carlos Drummond de Andrade.” “Sim, estou.” “Pois é, recebi uma carta dele uma vez.”
Fiquei um pouco atônito com a situação, sem saber exatamente o que dizer naquele momento. Talvez percebendo a hesitação, ela continuou. “Tenho uma carta dele aqui. Caso deseje, posso mostrá-la a você para que avalie se é algo que interessa à sua reportagem.” “Claro, dona Celenita, claro!”, respondi, já meio afoito. “Onde posso encontrá-la?” “Não, eu vou aí.” E ela veio trazendo não uma cópia, uma reprodução, um xerox de seu tesouro, mas a carta original, escrita no papel que Drummond escolheu para enviar aquela mensagem, com a letra do autor de alguns dos poemas mais relevantes de nossa literatura.
Perguntei se poderia tocar a carta e ela, de pronto, sorriu: “Claro, pode usá-la.” Com todo o cuidado do mundo, passei a manusear a missiva, buscando seus mínimos detalhes, suas frases, os contornos de cada letra. Se bem me recordo, o poeta elogiava a professora pela tese que ela havia defendido na Universidade de São Paulo sobre a obra do autor mineiro. Era uma joia o que tinha nas mãos, um objeto valioso que poucos poderiam se gabar de possuir. Mas dona Celenita não se gabava. Não era do seu feitio. Ela compartilhava, doava, agia naturalmente diante de seus enormes méritos, algo difícil nesse mundo eivado de vaidades. Descobriria depois que a família Turchi inteira é assim.
“Esse casal foi fundamental para o avanço da educação em Goiás, pioneiros na criação de universidades e exemplos de uma dedicação inamovível em prol do ensino. Suas filhas, todas com projeção em suas áreas de atuação, seguiram o exemplo dos pais.”
A carta foi publicada em destaque naquela edição comemorativa. Algum tempo depois fui recebido com um café saboroso no apartamento de dona Celenita, no Centro de Goiânia, quando fui fazer outra reportagem especial, desta vez sobre os 90 anos de seu marido, o professor Egidio Turchi. Esse casal foi fundamental para o avanço da educação em Goiás, pioneiros na criação de universidades e exemplos de uma dedicação inamovível em prol do ensino. Suas filhas, todas com projeção em suas áreas de atuação, seguiram o exemplo dos pais.
Dona Celenita, após uma vida longa e plena, se foi recentemente. Mas fica, para quem a conheceu, a imagem de uma mulher doce e forte, de olhar gentil, voz segura e sorriso franco. Fica mais do que isso: permanece em quem a conheceu a certeza do privilégio que foi encontrá-la em algum momento. No meu caso, fica também a gratidão por sua generosidade e desprendimento. Obrigado por tudo, dona Celenita!