Duas retas do senso comum encontraram-se no infinito. Foi quando se entenderam como paralelas de um momento muito particular da história do Brasil: uma delas, marxista, dizia que as coisas se repetem primeiro como tragédia e depois como farsa; a outra, culturalista, dizia que as canções de Chico Buarque estavam démodés – tanto as de protesto quanto as de amor. Cruzaram-se e disso surgiu um ângulo agudo de questões.
Já dizia o Guimarães Rosa de Tutameia que a estória não quer ser história. Isso num tempo em que a língua brasileira não tinha abolido a diferença entre estória (poesia, fábula, invenção, ficção etc.) e história (o-fato-em-si). Então o nosso escritor dizia que a literatura não quer, não queria, nunca quis ser realidade. Perdemos todos porque, linguageiramente em português, ficamos com uma palavra que dizia tão pouco – para dizer tudo. E não é que chegamos ao momento em que a história quer ser estória? (extinta a palavra, nada impede que a vontade se manifeste).
Vejamos como Os Saltimbancos já cumpriram sua missão semiótica de alegoria do Brasil da ditadura militar. Essa opereta infantil, o Google sabe, Chico Buarque adaptou da peça de Sergio Bardotti e Luis Enríquez Bacalov, que estavam lendo Os Músicos de Bremen para sua Itália. A adaptação feita por Chico estreou em disco em março de 77 e no teatro veio em agosto do mesmo ano. Naquele momento, lemos nos manuais de literatura infantil, as letras dessas canções denunciavam, na figura do jumento, a exploração do campesinato; na galinha, as condições precárias do operariado; no cachorro, a submissão cega ao poder militar e, na gata, a falta de liberdade de expressão.
Desde 2016, no entanto, um novo conteúdo da nossa história – estrela nascida no ângulo agudo do cruzamento das retas do senso comum – vem criando forças contundentes para disputar o significado desse significante “estórico”. O jumento agora carrega a carcaça da reforma trabalhista; a galinha choca os ovos da reforma da previdência; o cachorro corre e late pela volta da ditadura; e a gata foi morar nos museus, onde precisa afiar as garras contra os moralistas de plantão. Se isso será lido como tragédia ou farsa da história brasileira não sabemos, importa é que ironicamente este nosso momento faz o Chico Buarque das canções de protesto ganhar sentido mais uma vez. Já o Chico das canções de amor entendeu fácil que no coração de Bia meninos não têm lugar, mas isso não o impede de fazer um ou outro samba.
Naquele mesmo Tutameia, Rosa conta de um cidadão que viajava de bonde, passageiro único, em dia de chuva. Estando o tal cidadão sentado debaixo de uma goteira, foi incentivado pelo motorista a mudar de lugar. Ao que teria respondido: trocar de lugar, com quem? Quando as canções de protesto contra a ditadura ganham atualidade, não estamos todos sentados nesse banco debaixo da goteira sem perceber como deixar de nos molhar?