Por Rosângela Chaves e Valbene Bezerra
O jeito despojado e discreto, a fala mansa e pausada podem até enganar num primeiro momento, mas bastam alguns minutos de conversa com Luiz Mauro para constatar que, por trás da aparência de simplicidade, o que se manifesta é a personalidade complexa de um artista sofisticado e perfeccionista, que mergulha intensamente na composição do seu trabalho. Na primeira semana de janeiro, Luiz Mauro recebeu a reportagem de ERMIRA no Centro Cultural UFG para uma entrevista sobre sua obra. O espaço cultural da universidade abriga até o dia 2 de março a exposição Na Escuridão do Ateliê Nasce a Luz, que reúne a série de novos trabalhos do artista.
Nesta nova coleção, Luiz Mauro fez uma imersão no mundo particular dos ateliês de nomes proeminentes da arte mundial, rompendo com a técnica que desenvolvia desde o início da sua carreira, iniciada em Inhumas (GO). O óleo sobre tela, a sobreposição de tintas e texturas deram lugar ao desenho, à pintura em nanquim e a óleo, tendo o papel como suporte.
Primeiramente exposta em Paris, na Maison Européenne de la Photographie (MEP), em 2015, a série é atualmente composta de 28 trabalhos, dos quais 18 foram selecionados para a mostra no Centro Cultural UFG. As recriações dos ateliês de Rubem Valentim, Lygia Clark, Claude Monet e Pierre-Auguste Renoir, Anish Kapoor, Louise Bourgeois, Benjamin Johnston, Eliseu Visconti, Ad Reinhardt, Georg Baselitz, Paula Rego, Georgia O´Keeffe, Roy Lichtenstein e outros renomados artistas nacionais e internacionais impressionam pela alta qualidade do desenho e da pintura em nanquim e a óleo realizados pelo artista. A curadoria é de Divino Sobral.
Integrante da chamada Geração Anos 80, da qual despontaram grandes talentos no Brasil, Luiz Mauro dispensou o ensino formal, buscando por sua própria conta e risco a linguagem que melhor se adaptasse ao seu estilo. No ano em que completa 50 anos de idade, ele consolida sua arte de apelo universal. Dedicado quase exclusivamente a seu ateliê, instalado nos fundos de sua residência em Goiânia, ele ficou longe das galerias da cidade por 14 anos. Sua última exposição foi realizada em 2003, na extinta Fundação Jaime Câmara.
A ideia de retratar ateliês artísticos surgiu em 1997, quando Luiz Mauro viu em uma revista alemã a imagem do ateliê de Georg Baselitz, instalado num castelo no interior da Alemanha. Mas na época, por estar envolvido com outros trabalhos, teve de adiar o projeto, que ele havia esboçado num caderno e que acabou sendo esquecido por um tempo. Em 2008, surgiu outra ideia, a de retratar ateliês imaginários, que resultou em uma tela premiada do artista no Salão de Artes do Centro-Oeste em 2011. Ao final desse mesmo ano, ele começou a executar a primeira obra que compõe a série, a que retrata o ateliê de Monet – o espaço de criação de Baselitz seria realizado depois.
Durante todo esse tempo, Luiz Mauro se dedicou a uma profunda pesquisa para retratar/recriar os ateliês artísticos, um projeto que pode ser considerado como uma narrativa muito pessoal da história da arte moderna e contemporânea – embora ele já tenha pintado, por exemplo, o ateliê de Vermeer, a partir de uma gravura, e intenta fazer o de Leonardo da Vinci –, mas que também explora campos como a arquitetura e a fotografia. O artista enfatiza que, nessa tarefa de pintar esses ambientes, não fez uma mera representação pictórica, mas os apresenta como se estivesse se apropriando deles. “Na verdade, eu queria esses espaços para mim”, afirma, destacando a forte carga subjetiva e emocional que imprimiu em cada trabalho.
Luiz Mauro se diz feliz com a nova técnica, em que se esmera, sobretudo, em mostrar a “luz recortando a escuridão”, trabalhando obsessivamente nos detalhes das telas, que às vezes chegam a levar até 70 camadas de tinta nanquim. As obras são finalizadas com tinta a óleo, a fim de dar uma impressão de densidade. O efeito claro-escuro – que, segundo o curador Divino Sobral, confere “certa propriedade barroca” às pinturas − é algo que ele sempre explorou no seu trabalho, mas que ganhou uma outra dimensão com a série dos ateliês artísticos, a qual ele admite ter sido inspirada pelas gravuras do espanhol Francisco Goya.
Na segunda etapa da série, o artista se debruça na recriação dos espaços artísticos de Regina Silveira e Rosângela Rennó, dois grandes talentos brasileiros, e em uma performance do alemão Joseph Beuys. Outros artistas, segundo ele, já demonstraram disposição em abrir seus ateliês para o registro pictórico. “Quero fotografar primeiro, depois recriá-los”, explica. Durante todo o processo de elaboração da série, Luiz Mauro foi acompanhado de perto pelos curadores Divino Sobral e Gilmar Camilo, diretor do Museu de Arte Contemporânea de Goiás. De acordo com Luiz Mauro, a intenção é encerrar a série dentro de dois a três anos. Ele ainda pretende incluir na coleção o ateliê de algum artista de Goiás, como Veiga Valle, Gustav Ritter ou Frei Confaloni.
Material
Na sua opção de escolher o papel como novo suporte para seus trabalhos, Luiz Mauro contou com um forte aliado: o clima de Goiânia. Conforme o artista, a capital oferece um ambiente ideal para quem trabalha com esse tipo de material. “A época da seca é a melhor porque uso muita água nas primeiras camadas do desenho. A técnica exige cautela e muito cuidado”, explica. A escolha do papel demandou dele uma atenção especial, porque precisava de um material muito resistente para suportar a grande quantidade de camadas de tinta impressas em cada obra da série. Primeiro, utilizou o fabriano, comum no mercado. Não gostou do resultado. Hoje emprega um tipo feito de algodão e sebo de carneiro, trazido da França, que não é encontrado no Brasil. O papel é resistente, mas requer muita paciência no manuseio.
Já a tinta nanquim é de uma marca holandesa. As obras de dimensões maiores exigem a colagem de quatro folhas de papel. A recriação do ateliê do baiano Rubem Valentim, por exemplo, exigiu grande habilidade do artista. “De todos, foi o mais trabalhoso de fazer. Exigiu muita artesania”, conta Luiz Mauro, que levou três anos, das primeiras pesquisas até a execução da obra, para finalizar o trabalho. Para conseguir uma imagem do espaço de criação de Valentim, Luiz Mauro passou por um verdadeiro périplo. Depois de muito procurar, ele conseguiu um registro feito pelo fotógrafo André Santagelo, realizado logo após a morte de Rubem Valentim, em 1991, antes de o ateliê ser desmontado. A imagem lhe foi cedida por Bené Fonteles, que Luiz Mauro conheceu em 2016, na Bienal de São Paulo. Bené era muito amigo de Rubem e recebeu em testamento a mobília e as obras que estavam no ateliê.
Já as imagens dos demais ateliês retratados na série, Luiz Mauro as encontrou disponíveis em catálogos, livros de arte, revistas e na internet. Por essa razão, o artista também classifica seu trabalho como um “ready-made invertido”, em alusão ao movimento inaugurado pelo francês Marcel Duchamp. “Invertido” porque, ao invés de pegar um objeto industrializado e trazê-lo para um espaço de arte, mudando seu sentido, como fez Duchamp com o seu famoso urinol, Luiz Mauro se apropriou de imagens documentais, no caso as fotos dos ateliês dos artistas, para também alterar o sentido delas e recriá-las, transpondo-as para o campo do desenho e da pintura, num diálogo com a sua ideia anterior dos ateliês imaginários. Nessa transposição, uma preocupação foi eliminar a figura humana – muitas das fotos nas quais se baseou mostravam os donos dos ateliês retratados – para mostrar espaços silenciosos e solitários, mas que revelam, em cada detalhe, a enorme energia criativa ali presente.
O artista confessa que não estava “academicamente” preparado para fazer esse tipo de trabalho. Antes de começá-lo, portanto, foi preciso estudar desenho e perspectiva, o que fez por conta própria, já que em Goiânia, na sua opinião, não há profissionais capacitados para ensinar desenho. “Nem na Faculdade de Artes Visuais há professores com base acadêmica para ensinar desenho. Esse trabalho parece simples, mas não é. Eu jogo muito papel fora. Se não se respeitar as etapas do desenho e da pintura, ele não funciona. Fiz um estudo independente.” Nessa empreitada, Luiz Mauro conta ter recebido a contribuição de pessoas “generosas”, como o pernambucano Gil Vicente, que fez uma série em nanquim, usando tinta e papel de origem alemã, e que foi exposta na Bienal de São Paulo.
Quando iniciou a transposição dos ambientes para o papel, Luiz Mauro estava com todo o conceito da obra desenvolvido. “Minha intenção não era fazer arte instantânea. Começar de manhã e terminar à tarde. A demora é justificada. Ela é muito mais do que isso”, explica. Além da continuidade do novo trabalho, Luiz Mauro planeja morar por uns tempos no exterior. “A conotação da minha arte não é só goiana ou brasileira. É universal”, sublinha. Trata-se, segundo ele, de um trabalho caro, dispendioso, até para sua família. “Anos atrás eu fazia um trabalho por semana. Agora levo três meses para concluir um. Isso mexeu com toda a minha vida”, afirma.
Segundo ele, o mercado goiano ainda guarda muita resistência a obras em papel, o que dificulta a comercialização do seu trabalho por aqui. Apesar disso, diz que está bem representado no Brasil, vendendo sua obra praticamente para colecionadores de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. A vantagem, neste caso, é que os colecionadores costumam adquirir vários trabalhos de uma só vez.
Trajetória
Nascido “por força do destino” em Goiânia – complicações na gravidez obrigaram sua mãe a sair de Damolândia, onde a família morava, para dar à luz a Luiz Mauro na capital − , o artista desenha desde a infância, vivida entre Damolândia e Inhumas. O primeiro ateliê em Inhumas, dividiu com Nonatto Coelho, DiPaiva e outros jovens que sonhavam em seguir a carreira artística. Nessa época, Inhumas vivia uma efervescência artística e atraía muitos talentos de várias áreas com seu famoso festival, o Gremi.
Quando os amigos tomaram outros caminhos, Luiz Mauro passou a ocupar o espaço sozinho, situado em um prédio art déco cedido pela Prefeitura de Inhumas, onde dispunha de uma sala de trabalho de 80 metros quadrados. Em 2003, mudou-se para Goiânia, onde ministra aulas de desenho e pintura na Escola de Artes Visuais, no Ed. Parthenon Center. A mudança para a capital a princípio foi “melancólica”, já que Luiz Mauro precisou se adequar por um tempo a um minúsculo ateliê de 11 metros quadrados. Atualmente, ele conta com um espaço de trabalho de 26 metros quadrados, “bem mais adequado”, situado nos fundos da sua residência, no Recanto das Minas Gerais, onde vive com a mulher, a jornalista Ana Maria Morais, e a filha Sofia. O artista também é pai de Maria Clara, uma adolescente de 17 anos, fruto do seu primeiro casamento. No seu ateliê, gosta de trabalhar ouvindo música, que vai do rock, passando pelo jazz, ao erudito.
O desenho, que sempre fez parte da sua vida, foi aperfeiçoado nas visitas periódicas aos ateliês de Carlos Sena, Siron Franco, Fernando Costa Filho e Selma Parreira, que começou a frequentar ainda adolescente. Esses quatro grandes artistas goianos acabaram influenciando o aspirante a pintor. As já citadas gravuras de Goya e do brasileiro Goeldi também foram fundamentais para sua formação, assim como o trabalho do mato-grossense Adir Sodré. Também tinha como referência o caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo, e as revistas Galeria e Mapa das Artes. Quando podia, saía de Inhumas e viajava para São Paulo e Rio de Janeiro. Ia conhecer museus, galerias e escolas de artes e participar de cursos livres na área. Alguns anos depois, outras referências seriam suas conexões com o sul-africano William Kentridge e o cubano Kcho, nomes que o tocaram profundamente.
Como muitos nomes de sua geração, Luiz Mauro preferiu investir na formação independente, evitando o ensino formal de belas-artes, que à época considerava distante e alienado da arte contemporânea. “Vários dos meus amigos, como Enauro de Castro, Elyezer Szturm, Elder Rocha Filho, fizeram Artes Visuais. Eu não queria aquilo”, diz. Seus conhecimentos foram obtidos em leitura disciplinada da história da arte e na pesquisa incessante em busca de sua própria linguagem, que desde muito cedo ele procurou descolar da arte regionalista, a qual considerava como carente de “conceito”.
“Só sei fazer arte. A arte para mim não é terapêutica, mas traz camadas emocionais”, diz. Aos 17 anos, Luiz Mauro conquistou seu primeiro prêmio no Salão Nacional de Goiânia, realizado no Museu de Arte de Goiânia. Nos anos 1990, já era um artista conhecido fora de Goiás,tendo obras comercializadas pela marchande Regina Boni, de São Paulo, e sendo representado por Selma Albuquerque, de Belo Horizonte, dividindo espaço com talentos de alto nível. Hoje, suas obras são muitos valorizadas no Rio, em São Paulo e em Brasília.
Sobre sua longa ausência dos espaços expositivos de Goiânia, Luiz Mauro é incisivo: “Goiânia não tem galerias. Temos lojas de departamento que vendem obras de arte”. Ele ressalta, no entanto, o importante papel da Galeria Potrich para os artistas da cidade. Em outubro, sua coleção de ateliês será exposta na Galeria Referência, em Brasília. O artista também mantém contatos para uma nova mostra na França, já que sua exposição em Paris na prestigiada Maison Européenne de la Photographie (MEP) – onde Sebastião Salgado exibiu a sua mostra Gênesis – foi muito bem recebida pelo público e por críticos e curadores de arte.
Que belíssimo trabalho do Luiz Mauro. Não conhecia e fiquei encantada. Grata pela sensível reportagem.
Parabéns ao artista, telas lindas parabéns à jornalista, texto claro e super bem escrito
Um trabalho impressionante. Particularmente me identifico em retratar ambientes e fiquei fascinada.
lindos os quadros amei todos
o artista tambem lindo amei