(Curadoria de Luís Araujo Pereira)
[1]
Estou nele
Uma palavra sozinha
é desenho.
Se coloco um fio
entre ela e o vento
uma palavra voa
voa.
Meu serviço:
assistir da janela lateral
pequenos aviões que pasmam,
enquanto ligo fios entre
palavras,
enquanto deixo tudo mais
elétrico.
Caso chova
molho a caneta na nuvem
e tudo fica mais lágrima
menos aventura.
Caso amanheça
coloco o poema no varal
escuto gorjeios de avião
que saem da folha.
Certa vez
matei o medo
e estou vivo.
Certa vez
inventei um bocó qualquer
e estou nele.
Pretendo com isso tudo
quase nada
como fazer um belo bordado
depois desmanchá-lo.
Este, quando pronto, se chamará:
Muito Pelo Contrário.
̻ ̻ ̻
[2]
Perigoso
O que ultrapassa o papel vira
verdade.
Por isso o significado corre vazado de
poesia, e
metáfora é um negócio muito
perigoso.
Sei, sou um cara muito enrolado
que tem medo e o verbo cru
lhe mastigando a boca
a cada verso, em cada valsa.
A palavra vira doce,
saliva, virando nuvem
outra coisa.
Penso em comer o que há de leve
temperar a língua
da boca de outra pessoa
contar uma mentira
viver como uma palavra
perigoso como uma metáfora.
Penso em ouvir com a língua
desenhar com a saliva
na orelha e inundar os olhos
ultrapassar o que penso sempre.
Não só para poesia
sou todo ouvidos.
̻ ̻ ̻
[3]
Fora
Eu crio. Pelo silêncio invento o
estado mais suave que chamam
permanência. Se abro a boca
desfaço o lindo laço na garganta,
uma espécie de presente dado pela
ausência e pela dúvida. Sempre dormi
calado, acordei calado e às vezes
calado viro pro lado e vejo alguém
dizendo um “oi” usando o olho ou
um gesto. Como se a palavra se
desenhasse nesses movimentos. Às
vezes afirmam que meu lábio
cerrado é manifesto. De um modo
ridículo confundem meu jeito
sisudo com um ato político. Minha
guerrilha são soldados de vento
derrubando placas do centro, e o
armamento inclui apenas o poder
do mofo crescendo em silêncio no
lote vazio. Eu crio minha
permanência, me aproximo assim
da eternidade, e sigo influindo o
mínimo de problemas aos outros
que caminham pela cidade. Eu crio
paz, poeira e até mesmo saudades
um tanto rasas fazendo silêncio,
sumindo calado no vazio.
̻ ̻ ̻
[4]
Dentro
O menino novamente faz
perguntas. Ele é um mau espírito,
acredita que essas manifestações
vão mudar o mundo, meu anjo. Tem
a língua fácil de derrapar ao
aproximar do que chamamos
respostas. Ele tem a língua como
um algodão-doce, desfaz as
certezas pedaço por pedaço,
palavra por palavra. Balanço a
cabeça, repetidamente, como se o
menino fosse um pássaro dando
rasantes na minha cabeça. Ele volta
a fazer perguntas. Fuja para dentro
e lá estão os olhos do menino
penetrantes. De fora também estão
os dois olhos pontiagudos no
semáforo, nas coisas simplesmente
postas no lugar e na mancha de
lodo na parede. Esse menino é um
mau espírito, e apagar sua voz seria
como inverter o vento ou conseguir
colocar a nascente de um rio nos
olhos do peixe:
̶ Mas assim dizer que “nosso amor
é o maior” não é colocar os outros
amores reduzidos a pó?
O menino novamente faz
perguntas, desta vez para mim. Não
posso responder àquilo que me
cega, meu anjo. Dizer que “sim” ou
“não” me aproxima da realidade e
entre suas dobras me perco e só
encontro o sabor azedo das coisas
apodrecendo.
̶ Você disse que esse é o melhor
dia de nossas vidas e assim sepulta
a possibilidade de dias melhores?
̶ Detenham-no! Eu suplico.
̻ ̻ ̻
[5]
Fora
Eu deveria falar disso cantando, não
consigo. Gosto de ouvir calado.
Outro dia, ouvi na letra de uma
canção que reconhecer-se é
também perceber quão incompleto
se é. Imaginei um fotógrafo olhando
para a foto, pensando que apenas
admirar a paisagem seria uma
captura, uma representação bem
mais ampla. Eles deveriam falar
disso por escrito (o músico, o
fotógrafo), colocar o reconhecer de
um lado e o perceber do outro.
Fazer uma linha entre os dois,
talvez um gráfico. Os dias se
assemelham mais às letras no papel
̶ perfeitamente enfileirados ̶ do
que com notas dissolvidas pelos
dedos no violão. Eu deveria chegar
perto do músico, ouvir a canção
fazendo da minha solidão uma
festa, e uma trilha sonora impulsiva
dizendo algo como “vamos para
dentro, meu anjo”. Para o fotógrafo
eu explicaria que registrar um
momento não significa notar pontos
vazios, admirar esses pontos. Na
fotografia, o registro do real
impossibilita ver que dentro ou
mesmo entre tanta carne pode
habitar um menino. Queria explicar
pros dois amantes da vida que o
silêncio e a ausência têm presença
maior, dizer que uma angústia às
vezes é mais concreta que o violão,
a máquina fotográfica. Deixaria os
dois mudos e sairíamos calados em
bando, percebendo e
reconhecendo que dentro de tudo
sempre cabe mais um nada.
Perfil
Walacy Neto nasceu em Itaberaí (GO). Criou o selo literário Zé Ninguém, que publica fanzines e promove saraus em Goiânia com o intuito de tirar poetas da gaveta. Participou em 2015 da exposição coletiva Poesia Agora, no Museu de Língua Portuguesa. Participou também das três últimas edições da Balada Literária, em São Paulo. É um dos editores da revista literária Caroço. Em 2017, publicou Muito pelo Contrário, seu primeiro livro, que reúne poemas e prosa poética, pela Nega Lilu Editora, e integrou ainda a coletânea Antologia Clandestina, organizada por Mazinho Souza, que divulgou vários autores do coletivo Poesia Marginal Goiânia.
Que beleza e que potência os poemas do Walacy Neto!
Como leitor deste produtor de conteúdo, asseguro que o Walacy demarca terreno fértil na Literatura Brasileira Contemporânea. Suas poesias encantam através do domínio no uso da palavra. A irreverência e o tato relevante sobressaem. Li e reli “Muito Pelo Contrário” e destaco que é questão de ótima oportunidade adentrar no texto e contexto deste escritor goiano. O cara é realmente um Inventor!