Nas noites de segunda-feira, logo depois da novela (que na época era das 8 da noite), Jô Soares aparecia com seu impagável Viva o Gordo. Em meados dos anos 1980, o comediante era um dos mais populares do Brasil, fazendo graça com a política brasileira, com os costumes, com a liberdade recém-conquistada após 21 anos de ditadura militar. A censura afrouxara e Jô, que fora da trupe do provocativo Pasquim, nadava de braçada. E um de seus personagens mais carismáticos, que fazia enorme sucesso até com a criançada, era o Capitão Gay, um super-herói purpurinado.
Vestindo um collant rosa, Jô, ao lado de Eliezer Motta, que encarnava o impagável ajudante Carlos Suely, pulava no meio da tela, rebolando e cantando a música-tema do herói: “É o defensor da minorias, GAY! É sempre contra as tiranias, GAY!”. E em seguida, entoava a plenos pulmões: “Capitão GAY, GAY, GAY!” Com sua “bolsa de utilidades”, ele combatia homofóbicos de plantão e conservadores raivosos. “Gay quer dizer alegria, euforia. Eu sou o primeiro super-herói eufórico”, definia-se. E numa clara referência a Batman & Robin, os dois mascarados faziam a festa.
“Não me lembro de pressões religiosas para tirar o quadro do ar, movimentos gritando histericamente que os heróis eram ameaças à família tradicional e coisas do tipo.”
Isso acontecia cerca de 30 anos atrás e não me lembro de pressões religiosas para tirar o quadro do ar, movimentos gritando histericamente que os heróis eram ameaças à família tradicional e coisas do tipo. Ao mesmo tempo, Chico Anysio, nas noites de quarta-feira da mesma Rede Globo, levava ao ar as piadas com os afetados Haroldo, Painho, vestia-se de Neide Taubaté, tirava sarro da exploração da fé alheia com seu picareta Tim Tones, criticava profundamente as estruturas de poder com um personagem que era um Zé Ninguém, representando o povo, sem voz e sem direitos.
A impressão que tenho é que, pouco a pouco, fomos regredindo na aceitação das diferenças, na tolerância à discordância, na vontade de abrir a cabeça a novas ideias. Temos hoje, isso sim, uma sociedade dividida em grupos cada vez mais encastelados em seus próprios dogmas, desinteressados em aprender, em passar por outras experiêcias, que se recusam a abrir mão de suas ideias fixas e emboloroadas. Falei do humor, mas em muitos outros campos da cultura, do comportamento, da manifestação política é possível ver esse tipo de fenômeno.
“A corrupção e a desfaçatez na política eram já bem disseminadas, claro, mas agora colocamos ao lado dela o cinismo, a seletividade de uma indignação mimada e inconsequente. E as bandeiras liberais, de origem essencialmente capitalistas, começaram a ser encaradas como “coisa da esquerda”.”
Quando Enéias gritava na TV, nas propagandas eleitorais, que o Brasil precisava de uma bomba atômica, ríamos daquilo. Hoje, estamos diante de uma ameaça sem graça que vem do mesmo espectro político, mas com um discurso bem mais beligerante e carregado de ódio. A corrupção e a desfaçatez na política eram já bem disseminadas, claro, mas agora colocamos ao lado dela o cinismo, a seletividade de uma indignação mimada e inconsequente. E as bandeiras liberais, de origem essencialmente capitalistas, começaram a ser encaradas como “coisa da esquerda”.
Essas inversões apontam para uma era de complexados, que enxergam, o tempo todo, chifre em cabeça de égua. São fatos preocupantes que revelam o nível de esquizofrenia em que nos encontramos, em que a desinformação deliberada é acalentada como virtude e que o debate sério é desprezado como um defeito. E isso se reflete em um conservadorismo sem sentido e justificativa para atos hostis na cultura, com o retorno e o avanço de patrulhas, com deduções tresloucadas, com cenas inverossímeis de um moralismo comandado por um ex-ator pornô e um dono de bordel.
Exposições boicotadas e atacadas, histórias em quadrinhos proibidas, novelas mudadas ao sabor do humor das redes sociais. Diante de tudo isso, percebo que os anos 1980, com um humor que se arriscava mais, com uma moda que não se envergonhava de ser cafona, com uma música cheia de experimentações (algumas desastrosas), com um cinema menos padronizado, um teatro mais ousado e uma literatura mais desafiadora, tinham mais frescor que o cenário atual. O público parecia entender melhor as propostas, os chistes, os desbundes. Hoje, praguejam e rogam a Deus para que tudo isso vá para o inferno. Talvez já estejamos nele. Um inferno habitado por neuróticos.
Boa indagação essa do texto.
Mas não tenho certeza se regredimos.
A internet deu voz alta aos preconceitos que, a meu ver, sempre existiram.
Na década de 80, poucos tinham acesso aos meios de comunicação massivos.
Hoje não há barreiras para a expressão.