(Curadoria de Luís Araujo Pereira)
[1]
Soneto
No céu duma tristeza cor de farda,
Uma angústia de nuvens se desenha.
O amor já morreu: que o tempo venha
Desmantelar o que a memória guarda.
Jogai!, jogai! Quem não jogar não ganha
Nem perde. É a última cartada.
Eu aposto na vida, mesmo errada.
Talvez outro destino me sustenha.
Avião de Lisboa para o mundo,
Apaga-me a tristeza com as asas,
Tão nítidas no céu em que me afundo!
Depois desaparece atrás das casas
E deixa-me o azul, o azul profundo,
E duas nuvens de razão tocadas.
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[2]
Gato
Que fazes por aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,
ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pêlo, frio no olhar!
De que obscura força és a morada?
Qual crime de que foste testemunha?
Que deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo
ainda sem palavras, sem enredos,
quem somos nós, teus donos ou teus servos?
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[3]
O morto
O morto, assim barbeado,
assim vestido, calçado,
está pronto a ser enterrado,
está pronto a ser olvidado,
que ele agora é uma coisa,
é de fora para dentro.
Só aos vivos falta o tempo.
A ele não, que é uma coisa.
Não tem lazer, que fazer,
nem aflição ou dívida.
Qualquer destino lhe serve
à maravilha.
E tanto se lhe daria
ser o defunto na sala,
como carcaça na vala
ou objecto de poesia.
Mas não se esquecem os vivos
de condimentar o morto.
Para que dele não fique
mais que o osso?
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[4]
Três carneiros do Tejo
Nasce na serra de Albarracim, em Espanha,
entra-nos em casa pelo Ródão,
arremeda-nos a sua galadela,
depois acalma, vai deitando corpo,
e aqui, já todo ancho, o atravesso
diariamente, eu, o ribeirinho
que traz a mão na estiva de palavras
no outro lado e a cabeça algures.
Cada um com sua nuvem rente à boca,
que em alguns é o cúmulo da prosápia,
das leiras do sono nós todos arrancamos
pra Lisboa, a tão estremecida,
e ao barbeirinho opomos catadura
de quem está zangado com a vida.
E estamos.
*
Dragado de conversas, Tejo, darias mais calado
à nossa companhia,
mas calados só eu e a rapariga
que passou a noite a vadrulhar,
deu um pulo à tia e volta prà cidade
já quase na pele doutra pessoa,
retocado o bâton, aproveitada a olheira,
reposto o seio no lugar, tão sobranceiro!
É de dia caixeira, aposto eu.
Não vale que tu viste, digo eu eu.
*
Ó Tejo nunca inaugurado, nesta praça
devia haver comércio, esplanadas, mesas
onde eu assentaria o cotovelo e, a cafés,
diria, versejando, quem não és.
Com as Dez Odes do Dr. Armindo,
que, aliás, são um poema lindo,
ó Tejo vaidosão tu transbordaste,
tu não te contiveste, tu não te aguentaste!
Mas eu, Tejo continuado, nesta praça
minist’rial que mais te posso dar,
a ti que vens de Albarracim, meu espanhol,
que passaste Almourol,
que passaste Pereira Gomes e Redol,
senão a frase sim ou não ouvida
com este meu ouvido, com esta minha vida,
a um rapaz que, sem malícia, veio,
da sombra sei lá de que sobreiro,
para dar em alguém, cá na cidade:
Ser da polícia,
dá cantina, barbeiro, autoridade.
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[5]
o chapéu de tchekov
tchekov anton rebocava o seu
pulmão pelos ares da crimeia
mais ou menos quando a engomadeira
de cesário passava os seus pulmões
pelo carvão do ferro
gorki vai visitá-lo palmilhá-lo e à cancela
observa-o no umbroso jardim chapéu na mão
aparando no côncavo um cambiante raio
do sol que pela folhagem trémula se infiltra
gorki retém-se vê o tostão de sol
cair no chapéu de anton neto de servos
vê anton virar tac o chapéu e espreitar para dentro
como quem tirado o chapéu nele procurasse
a sua própria cabeça
tchekov brincava com o alheio sol
na pessoal solidão
Perfil
Alexandre Manuel Vahia de Castro O’Neill de Bulhões nasceu em Lisboa no dia 19 de dezembro de 1924 e morreu na mesma cidade em 21 de agosto de 1986. Após concluir o Liceu, cursou a Escola Náutica, mas acabou tornando-se autodidata. Foi um bem-sucedido redator de propaganda, profissão em que atuou até o fim da sua vida. Pela suas afrontas à ditadura de Salazar, foi preso pela Pide, a polícia política do regime, permanecendo detido por mais de 20 dias. Em 1948, ao lado de Mário Cesariny, José-Augusto França, António Pedro, entre outros, participou da criação do Grupo Surrealista de Lisboa que, mais tarde, por divergências internas, se desmembraria. A sua obra poética foi criada com base na estética surrealista, embora tenha se aproximado também das experiências vanguardistas, como o concretismo. A sua estreia na literatura ocorreu em 1948, com o livro de poemas A Ampola Miraculosa, que inaugura os “Cadernos Surrealistas”. Vieram em seguida os seguintes títulos: Tempo de Fantasmas (1951), No Reino da Dinamarca (1958), Abandono Vigiado (1960), Poemas com Endereço (1962), Feira Cabisbaixa (1965), De Ombro na Ombreira (1969), Entre a Cortina e a Vidraça (1972), A Saca de Orelhas (1979), As Horas Já de Número Vestidas (1981), Dezanove Poemas (1983) e O Princípio de Utopia, O Princípio de Realidade, seguidos de Ana Brites, Balada Tão ao Gosto Popular Português & Vários Outros Poemas (1986). Em 2012, a editora Assírio & Alvim lançou a 6ª edição de suas Poesias Completas. Publicou ainda dois livros de crônicas, fez traduções e organizou antologias.