[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Confissão
Não lembro quando tomei para mim
a dolorosa tarefa de escrever o caos
moldado com lama
Dia após dias enchendo de morte os pulmões
procuro espantar a discórdia num escarro
embora em certas horas queira apenas
dar cabo do mundo num bocejo
Descansar desse ofício
sob as asas de um anjo decaído
nascido das entranhas
de uma estranha vaidade
Minhas mãos roídas por um cancro
indispõem-se a reger os acordes
da cólera divina
não quero mais nesse mundo canceroso
celebrar aniversários
̻ ̻ ̻
[2]
Luto
Tinha mania de enterro
de seguir nas ruas carros funerais
de chorar por defuntos não sabidos
Gostava da dor infinita
dos que embarcam entes
para viverem já mortos
a vaga ideia de Paraíso
perdida obscura
na escura tumba onde jazem
Era também dele
aquele sofrimento
o insepulto soluço dos que ficam
Era ele da divina orquestra
a falsa nota
tinha vivido o pesadelo enorme
de amar o que é doente
numa terra muda, seca, infértil
sempre a abrir crateras
por onde vaga
o réptil dos répteis
[3]
Equinócio
ecos equidistantes ecoando no caos
dias iguais às noites
dias e noites perdidas no cais
desatando nó
cultivando ócio
reproduzindo cio
nó
ócio
cio
equinócio
ciclo
̻ ̻ ̻
[4]
Máscaras
Há infindáveis minutos abriram as cortinas
e ainda estamos aqui
despreparados para tantos papéis
já cansados de tanta tragédia
para tanta comédia, ingênuos
apesar de afinados no uso das máscaras
Aguardamos adestrados
a salvação do último ato
̻ ̻ ̻
[5]
Do dia em que se faz anos
Tenho 28 anos
setenta e cinco centavos no bolso
e uma gastrite
já uma pequena úlcera
futuro câncer que decerto terei
herança de família
Tenho alguns poucos
mas bons amigos
e o contentamento de
ainda poder recordar
Levo um cigarro picado
ornamento de orelha
e os mortos por quem tanto chorei
Carrego ainda um romantismo
que cedo me foi incutido
e isso quase sempre me adoece
A noite também me é excessiva
Devo dizer que esse cheiro
de fósforo já mudo
a sombra dos rostos sob a luz dessas velas
nessa data que outrora fora querida
comovem-me
formam esses rios que umedecem meu sopro vazio
deixam a penumbra que traz consigo
um eco de palmas e sorrisos
e esta máxima Envelhecer é um privilégio
Perfil
Thaise Monteiro nasceu em Campo Grande (MS), em 29 de março de 1987. Goiana desde os dois anos de idade, descobre o gosto pela poesia e pelo teatro, fundando, em 2006, a Cia de Arte Poesia que Gira, na qual desenvolve trabalhos como atriz. Atua também em diversos grupos teatrais da capital goiana, como o Grupo de Teatro Guará, Farandôla Teatro, Grupo de Teatro Arte Fatos e o Corpo de Voz, grupo de vocalização de poesia. É autora da peça teatral Rato de biblioteca e de Modus operandi, livro de poemas que, em 2015, recebeu menção honrosa no Prêmio Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos e foi publicado em 2017 pela R&F Editora na coleção Pé de Letras. Em 2016, o livro Equinócio, também de poemas e em fase de publicação, foi distinguido com o prêmio na categoria poesia. Sobre o seu livro de estreia, Micheliny Verusnchk afirma, em prefácio, que os seus poemas são estruturados com “rigor e sensibilidade”, acrescentando ainda as seguintes observações: “Um olhar que ora transita da grande angular para a particularidade, que ora abre no singular aquilo que é geral. Nesse movimento, interessa à poeta principalmente o humano: a dor, a angústia, a solidão, a respiração. É, aliás, admirável o modo como se articulam esses movimentos e as noções de dentro e fora: como se fosse possível circular concomitantemente pelos espaços íntimos do sujeito poético e pelas paisagens que o circundam.” Na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás, concluiu o bacharelado em Literatura e a licenciatura em Língua Portuguesa em 2012. No ano de 2014, tornou-se mestra e, em 2018, doutora na área de Estudos Literários.
Me dei conta hoje de manhã com esses cinco poemas, deu vontade de dormir novamente, acordar e repetir este ato sagrado com sagradas poesias.