A minha infância não pode ser dissociada das histórias em quadrinhos: elas eram presença constante e inevitável, quase uma vocação religiosa, cornucópia de inúmeras surpresas, ao lado dos clássicos de aventura, no estilo que R. L. Stevensen imprimiu às suas narrativas. Essa influência foi tão decisiva que me levou a ler mais tarde livros mais complexos, mas que nunca me fizeram deixar de lado os gibis e as histórias de aventura.
Até hoje, não me esqueço do dia em que consegui ler pela primeira vez as palavras dispostas nos balões: o objeto da minha iniciação ao universo da leitura, que eu tinha diante dos olhos, era um gibi, cujo título o tempo infelizmente apagou da minha memória, embora assome, de vez em quando, de forma esgarçada, a lembrança de um Tarzan aberto sobre o meu colo. Ou era um Flash Gordon? Uma hora dessas, quando eu menos esperar, talvez me lembre do autor que me permitiu essa epifania. Como prêmio pelo esforço pessoal, o ato de ler pela primeira vez as letras e fazer as combinações entre consoantes e vogais têm o sentido de uma transfiguração. Acho que nesse momento, eu comecei a me tornar um cidadão.
O gosto pela literatura, pelo cinema e pelas artes talvez decorra daí ̶ desse instante que fixou na criança um hábito de leitor que sempre seria incentivado pelo pai. A imagem e o texto, as relações significativas entre os dois, as diversas linguagens que formam a cultura letrada ̶̶ foi tudo isso que herdei, a maior fortuna que um pai pode deixar para o filho.
Mais tarde, esse interesse pelos gibis levou-me a colecioná-los, chegando mesmo a encapar cada um deles com papel celofane. Ao longo da minha vida, perdi muitas preciosidades (quase todo Pererê, de Ziraldo, que circulou de 1960 a 1964), mas, em compensação, adquiri muitos outros títulos, num frenesi de colecionador, os quais foram sendo devidamente guardados na estante como raridades.
Quem leu As Palavras deve lembrar-se de como a formação burguesa de Sartre deu-se em torno de uma hesitação: ora aceitava certos autores, ora rejeitava outros; mas, certamente, tinha o olhar assimétrico voltado para os grandes escritores. Nesse embate de preferências intelectuais ̶ portanto de paixões ̶ , ele tornar-se-ia muito mais tarde o pensador que apostaria a sua ação na radicalidade, o que significa que tinha afinal escolhido os seus autores e encontrado neles fundamentos para a prática política.
Os leitores sensíveis são capazes de descobrir a alma de um texto e depois incorporá-la à sua responsabilidade social. No que me diz respeito, não sei o que eu me tornei com a leitura de tantos gibis e livros. O leitor, porém, nunca deixou de ser o mesmo, talvez mais exigente, que se diverte até hoje com uma história bem desenhada ou maravilhosamente narrada. Para dizer a verdade, talvez esse ganho seja um dos poucos de que me orgulho: a leitura não pede nada ̶ ela só exige um bocado de atenção.
Depois de tanta polêmica no passado, não resta mais dúvida de que as HQs ocupam, hoje mais do que antes, um lugar importante na cultura de massa. Na década de 1970, com Roland Barthes, Umberto Eco, Fresnault-Deruelle e o surpreendente número 24 da revista Communications, a semiologia europeia construiu um saber e uma teoria, com estudos que descreviam o seu funcionamento, acompanhada de investigações sociológicas que avaliavam a sua recepção. Ao lado da produção acadêmica, surgiu o interesse dos educadores, que ficaram fascinados com a sua função pedagógica. Se tudo isso não é suficiente para destacar a sua importância, o que dizer de Bilal, Moebius, Serpieri, Frank Miller, Jodorowsky? Bem, entre tantos outros, estes deram ao gênero o seu status definitivo de Arte. Filmes como Alien ̶ O Oitavo Passageiro, O Quinto Elemento e Matrix, seja na sua cenografia, seja na concepção das personagens, receberam o aporte criativo de cartunistas.
Por tudo isso, é espantoso constatar ainda hoje que existam pessoas que nutrem reserva moral pelas histórias em quadrinhos. Ser contra essa forma de comunicação, nem sempre adotando bons argumentos, é na realidade ser contra os gêneros narrativos. Em uma ontologia simplista, um gênero não é superior a outro ̶ eles são apenas diferentes. Do ponto de vista analítico, apreciar um gênero significa também estimar o seu código, as suas regras sintáticas e as suas singularidades. E isso, afinal de contas, exige alguma competência ̶ e muita leitura, aquelas que somam.
Na infância, nós perdemos e ganhamos muitas coisas. As crianças que leram gibis, sobretudo aquelas que tiveram contato com a sua diversidade, estarão teoricamente bem preparadas para outras leituras mais tarde, algumas desafiadoras. Leituras mais urgentes e difíceis, é verdade ̶ mas que sempre as farão lembrar de um axioma: o mundo é recriado pelas histórias em quadrinhos, tout court, pela imaginação frondosa do artista.