Um aristocrata que lutava pela igualdade. Um humanista que se lançava à guerra com a mesma violência implacável dos seus inimigos. Um filósofo que costumava pensar em voz alta. E um romântico que ansiava alcançar tanto em tão pouco tempo: a democracia, a justiça e a unidade latino-americana.
São várias as facetas de Simón Bolívar, que um dia sonhou em lançar a pedra fundamental da liberdade sul-americana. No livro O Espelho Enterrado – Reflexões sobre a Espanha e o Novo Mundo, o escritor mexicano Carlos Fuentes procura definir a persona do herói venezuelano que, ao lado do argentino José de San Martín, liderou a luta pela independência das colônias espanholas da América do Sul no início do século 19.
Leitor de Rousseau e de Montesquieu, esse republicano ardoroso, embora descendente de uma família aristocrática riquíssima, desde muito jovem demonstrou seu inconformismo com a submissão de sua terra à Coroa espanhola: afinal, se questionava, por que não podemos comerciar por nós mesmos, pensar por nós mesmos e governar a nós mesmos? Foi com esse propósito que organizou um exército rebelde que libertaria o continente sul-americano do domínio espanhol, revelando-se um gênio militar.
Mas, como salienta Carlos Fuentes, a grande batalha de Bolívar ainda estava por começar. Uma vez conquistada a independência, a grande questão era: como governar?
A América Latina carecia justamente daquele elemento que Montesquieu julgava essencial para a constituição de um regime republicano: uma sociedade civil independente, sobre a qual fosse possível erigir instituições democráticas duradouras. O que havia era um amálgama de forças sociais que combinavam uma maioria oprimida de índios, negros e mestiços, uma aristocracia rural que não havia apoiado a independência com medo de dar poder aos “pardos” e os novos caudilhos militares que haviam combatido, mas tinham seus próprios interesses particulares.
Todos esses grupos deram as costas a Bolívar quando o líder revolucionário propôs um executivo forte e um despotismo “esclarecido”, encarnado por ele próprio. Abandonado, perseguido por seus ex-aliados, rejeitado pelas populações que ajudara a libertar, Bolívar, já gravemente doente, morreu aos 47 anos – os últimos meses de vida do chamado Libertador são recriados de maneira comovente por Gabriel García Márquez no romance O General em seu Labirinto.
Carlos Fuentes comenta que um dos erros de Bolívar, no seu sonho de ver uma América Latina unida e democrática, talvez tenha sido o de não considerar os modelos de autogoverno que haviam sobrevivido em muitas comunidades agrárias do continente. Proclamou-se ditador em nome da unidade, para combater a anarquia que ameaçava as repúblicas sul-americanas nascentes. Mas seu gesto só fez fortalecer os caudilhos e as oligarquias locais.
Entre os seus anseios de liberdade e igualdade e os seus ímpetos autoritários, Simón Bolívar foi antes de tudo um herói trágico. Por sua trajetória, esse personagem fascinante deixou um legado que merece uma discussão mais séria e responsável que possa ir além do que se chama depreciativamente hoje de “bolivarianismo”.