A terrível Noite de São Bartolomeu, quando milhares de protestantes foram assassinados a mando do rei Carlos IX e de sua mãe, Catarina de Médicis; as várias tentativas de assassinato de Henrique de Navarra, que se tornaria o futuro rei Henrique IV; a morte atroz de Carlos IX, sufocado em seu próprio sangue. São muitos os acontecimentos sanguinolentos de uns dos períodos mais cruéis da história da França, entre 1572 e 1574, que Alexandre Dumas recria, com muita liberdade imaginativa, em A Rainha Margot, um dos seus romances mais populares, ao lado de Os Três Mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo. Em meio a esses episódios assombrosos da História real, uma passagem inteiramente fictícia do livro revela-se comovente: é quando o carrasco Caboche, após salvar a vida de um nobre cavaleiro, fica emocionado depois que este o cumprimenta com um aperto de mão, em sinal de agradecimento.
Naquele cenário, o carrasco era um funcionário a serviço da realeza, a quem cabia não só a tarefa de decepar, a golpes de machado, a cabeça dos condenados ao cadafalso, e depois atirar os cadáveres em valas anônimas, mas também de manejar os vários aparelhos de tortura da chamada Sala da Questão da prisão de Vincennes, nos arredores de Paris. Era lá que os procuradores do rei obtinham as confissões dos presos, culpados ou não, após submetê-los a suplícios inomináveis executados pelos carrascos.
Apesar das funções reais que desempenhava, Caboche vivia como um pária em meio à população da capital francesa. As pessoas o evitavam como alguém que padecia de uma doença contagiosa, como se qualquer contato físico da parte dele pudesse manchá-las com o sangue das vítimas que sucumbiram por suas mãos. Daí a comoção de Caboche com a atitude de Coconnas, o cavaleiro que lhe devia a vida, quando este estendeu a mão ao seu salvador, mesmo tendo consciência do estigma que ele carregava.
Caboche, o carrasco de bom coração, é um personagem fictício, e um tanto idealizado, que Dumas, um ferrenho opositor da pena de morte, inventou para denunciar o absurdo de um sistema penal que se vale da tortura e do assassinato em nome da justiça. Na vida real, de fato, os bourreaux (carrascos em francês), assim como Caboche, apesar de integrarem um sistema judicial monopolizado pelo Estado, encarregados das tarefas de tortura e execução dos presos, historicamente sempre foram figuras marginalizadas.
Na França da Idade Média até a Revolução Francesa – quando a tortura a que os presos submetidos à pena capital foi abolida; a morte na guilhotina era considerada mais “civilizada”, porque infligia menos sofrimentos às vítimas −, o opróbrio social associado ao ofício do bourreau recaía não só sobre quem o exercia, como também sobre suas famílias. Tanto que seus filhos normalmente viam-se obrigados a atuar igualmente como carrascos, porque eram impedidos de exercer outras funções.
Por ser considerados impuros, qualquer alimento que os bourreaux tocassem tinha de ser descartado. Eram obrigados a habitar fora da cidade e usavam sobre as roupas uma insígnia que designava a sua função, a fim de que fossem facilmente identificados. Em épocas de fome e miséria, os bourreaux até gozavam de uma posição mais confortável que o restante da população, porque tinham seus rendimentos assegurados. Mas o ofício era considerado tão infame que às vezes era preciso recrutá-los entre os criminosos, que aceitavam a função de carrasco para escapar da forca ou da sentença de trabalhos forçados.
Sem dúvida, não deixa de ser uma tremenda hipocrisia a atitude dessa sociedade que condenava ao ostracismo os carrascos, apesar de empregá-los para fazer valer o seu cruel sistema de penas e castigos. Porém, a questão moral que se impõe, diante de uma situação como essa, não é a de integrar ou não tais pessoas ao meio social. Mas sim a de abolir um ofício que, por ser degradante, degrada quem o exerce, tendo em vista que a tortura e o assassinato representam um atentado à dignidade humana, tanto das vítimas quanto dos seus algozes, ainda que estes estejam a serviço do Estado e manifestem visível desprezo por qualquer noção de direitos humanos.
Após séculos de revoluções, de duas guerras mundiais, das muitas declarações de Direitos Humanos aprovadas e incorporadas à legislação de vários países, da abolição da pena de morte em grande parte do mundo ocidental e – cá entre nós, no Hemisfério Sul −, depois do fim dos regimes ditatoriais e do avanço em considerar a tortura como crime imprescritível e inafiançável, o ofício infamante do carrasco, infelizmente, ainda não foi extirpado de nosso meio, como o prova a prática da tortura nas delegacias e prisões Brasil afora. E corre o risco de ganhar um novo status, saindo do terreno das sombras e da ilegalidade para ganhar o beneplácito público da nossa mais alta autoridade, a depender do resultado das eleições presidenciais.
O candidato da extrema-direita que diz que seu livro de cabeceira são as memórias de um notório torturador e que já se manifestou abertamente a favor da tortura ameaça, neste aspecto, realizar o que certamente nunca passou pela cabeça do mais implacável dos reis absolutistas. Porque nem nos seus piores delírios, Carlos IX, o monarca a cuja memória ficaram associados os massacres dos protestantes da Noite de São Bartolomeu, cogitaria a possibilidade de aceitar a presença do carrasco do reino em meio ao seu séquito ou franquear-lhe o acesso à corte, por ser algo que atentaria contra o decoro e a imagem da própria realeza, símbolo de virtude e magnanimidade.
Mas nestes tristes trópicos, sob o comando de quem elege a tortura como uma espécie de princípio de governo, e cujos seguidores vestem camisetas com a imagem de um dos mais sádicos torturadores da ditadura militar, os carrascos bem que poderão sair dos porões para se tornarem os novos heróis da nação – os “mitos” a serem recebidos com honras no palácio.
Lá, sob os holofotes da imprensa, eles terão a chance de se vangloriar publicamente dos seus crimes, das torturas praticadas contra aqueles que por qualquer razão – por pensar diferente, por causa da cor da pele, pela opção sexual, por vestir a roupa da cor errada, por existir apenas – serão considerados inimigos a serem eliminados. Os torturadores que apresentarem as melhores estatísticas serão condecorados, e eles serão a principal atração dos jantares chiques da sociedade. Ganharão destaque nas colunas sociais, milhares de seguidores no Facebook e no Instagram, que vão, por sua vez, dar milhões de curtidas às fotos mais “hardcore” das sessões de tortura que eles postarem. No púlpito, os pregadores vão proclamá-los como instrumento de uma bizarra justiça divina. E eles se tornarão também o modelo de marido ideal para as moças bonitas e higiênicas das famílias de bem.
Assim, a nação vai se curvar diante deles – extasiada em face dessa nova majestade, o carrasco.