– Contar pra vocês
o torturador que tem soco inglês,
mudar não mudou…
Lá em Xerém,
Vilmar, o pára-militar, bate bem
numa pelada fuderosa
onde não tem pra ninguém.
Ele só chama adversário
de meu anjo e neném
mas quando baixa o santo ruim
é pé na cara
e, olha bem,
lambe o bigode assim PC,
dá de madeira em você
por tudo que cê disse
e que não disse.
No fim, pede uma pizza de aliche,
diz que tá lendo Frederico Nietzsche.
Conta que é torturador,
não é nada pessoal,
se convocado outra vez
volta e me mete o pau, uai!
Aí, eu jogo pinga na língua
que imita a ginga
do Nelso da Capitinga
que xinga
mas a catinga
diz que eu me sujei.
Esta é a letra de Par ou Ímpar, samba de Guinga e Aldir Blanc, gravado por Guinga para o CD Delírio Carioca, de 1993. Samba, futebol, tortura e ditadura. Um dos raros a falar com graça, ritmo, ironia e malícia de um crime contra a humanidade. Sem banalização. Verdadeiro: “a catinga diz que eu me sujei”. E você é capaz de até rir. Talento de Guinga e de Aldir Blanc, Aldir que foi psiquiatra, ouvinte da loucura. Diz a letra que o torturador lê Frederico Nietzsche jogado (pela irmã do filósofo) no colo do nazismo (voltando à moda).
Para citar outro filósofo, Kant, a pergunta é: em que condições de possibilidade um ser humano se torna torturador de ofício, ao mesmo tempo que não deixa de ser simpaticão, informal, defensor da família e dos bons costumes, praticante de esporte, torcedor do Parmera, crente em Deus (“Deutschland über alles”, “Alemanha acima de tudo”, lema de Hitler, que não matou seis milhões de judeus sozinho, nem segurou sozinho uma guerra contra o mundo apoiado por apenas dois países, Itália fascista e Japão não menos, por longos seis anos, de 1939 a 1945, e olha que quase fez a bomba), etc., etc.? Hora de estudar o torturador.
O samba, a psicologia e a psicanálise têm algo a dizer. Por exemplo, a psicanalista Maria de Fátima Vicente não despreza a memória, a história e a ciência social para elucidar a patologia do torturador no seu livro Psicanálise e Música/Aproximações. Perderemos a musicalidade, o humor e o senso da tragédia ao falarmos de tortura? A psicanálise estaria especialmente apta para falar da crueldade contemporânea, como queria o filósofo Jacques Derrida? Abriremos mão daquilo que nos constitui como seres humanos, como parlêtres, como falasseres, como seres de fala, como queria Lacan? Poderíamos desprezar o ensino de Lacan quando ele diz que sádicos e masoquistas são resultantes da patologia humana, da paixão humana, e que ambos estão a serviço de um Grande Outro, tal como marionetes a serviço de um Senhor, que vampiriza a ambos e os transforma em Mordomos de Tânatos que gozam, gozam, gozam, sem parar, mortiferamente?
Não é pela existência da morte (sempre discutida, sempre posta em dúvida), nem pelos efeitos do inconsciente que a psicanálise pode des-responsabilizar quem quer que seja: derrotados os masoquistas, ascensão para os sádicos. Sem esquecer que as duas posições estão ao alcance de todos. Não se trata de puras essências, nem de supostas naturezas imutáveis. Vento que venta lá venta cá. Na esquerda e na direita. O olhar clínico, porém, vislumbra um para-além da patologia, e se deixa tocar pelo inesperado, que poderá vir de qualquer canto, até mesmo do canto da mística, das confirmadas previsões de um Chico Xavier, por exemplo.
Diz o mavioso canto do médium brasileiro que julho de 2019 é a data-limite para a humanidade: ou ela abre mão da hecatombe nuclear e abandona o caminho da violência e da belicosidade, ou … potências angelicais intervirão e impedirão que os sádicos e os masoquistas destruam a ordem cósmica. Desarmado, cético, com sua escuta furada, o analista só pode testemunhar o discurso. Desde Freud, agnóstico por dever de ofício, sem perder a fé no inconsciente inacessível – Deus é inconsciente, segundo Lacan – o analista só pode confessar sua – alguma – perplexidade. Torcer para que saiamos da pré-história. Será?
Mas antes disso, antes que julho de 2019 chegue e confirme mais uma das previsões de Chico Xavier (que não é João de Deus), o que pode nos ensinar a psicologia do torturador? Algumas coisas, diz Maria de Fátima Vicente, que inicia seu artigo Nu com a Minha Música ou A Alegria é a Prova dos Nove, para falar de tortura no seu livro citado. A primeira parte do título refere-se à canção de mesmo nome, de Caetano Veloso, e a segunda, a Geleia Geral, de Gilberto Gil e Torquato Neto. O repertório da música brasileira é amplo, rico e variado. A pesquisa de Maria da Fátima não deixa de fora Chico Buarque, Milton Nascimento (“Não vá dormir como pedra, e esquecer o que foi feito de nós”, in Vera Cruz, com Fernando Brandt), nem o atrevido e atual Bezerra da Silva com seu “Se gritar pega ladrão”, quando lembra que “Mas se gritar pega ladrão!/Não fica um, meu irmão./Se gritar pega ladrão!/Eh! Não fica um!”. Ele disse: “Não fica um”, dito agora elevado à epígrafe de estudo psicanalítico da tortura praticada nos civis presídios brasileiros e também nos quartéis, como o da Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita, no bairro da Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro. A Tijuca pede um estudo psicanalítico.
Maria de Fátima relata a seguinte experiência. “Era com essa cantoria [“Se gritar…] que os presidiários de uma certa cadeia, do interior de suas celas, transmitiam coletivamente o aviso de que as meninas, o psicólogo e o padre estavam chegando. Reunidos em círculos, sentados no chão frio do pátio à hora do sol, psicólogos e detentos falavam e se ouviam. Os presos faziam os relatos dos acontecimentos vividos: a prisão ilegítima, o isolamento e a incomunicabilidade, a ausência de assistência jurídica; faziam também pedidos: levar notícias aos familiares, avisar aos credores, providenciar documentos perdidos. Encontravam uma escuta atenta que testemunhava a legitimidade de suas existências, que repudiava o sofrimento a que estavam submetidos, e processavam um cuidadoso trabalho de reorientar as demandas em direção às implicações da responsabilidade subjetiva e às lutas por reivindicações coletivas. Cautelosos, os presos denunciavam as torturas que sofriam por meio do estratagema de solicitar a confissão ao padre. A precaução levava em conta o sigilo que o religioso podia garantir, o que representava proteção para eles e para nós, os psicólogos.”
A psicóloga relata que a tortura era exercida pelos agentes carcerários e por muitos presidiários, cumprindo a finalidade de garantir a supremacia do torturador sobre o torturado. Os presidiários que praticavam a tortura haviam sido cooptados por privilégios obtidos por meio de delações. Os carcereiros movimentavam um complexo sistema de trocas e circulação de bens necessários à sobrevivência nesse lugar infernal. O ódio sustentava a manutenção do poder e da extrema dependência, mas a garantia de supremacia estava sempre ameaçada, poderia ser rompida a qualquer momento, já que a posse de arma diferenciava os lugares de torturador e torturado. “A tortura mantinha uma distância rudimentar em relação à extrema familiaridade que compartilhavam, pois eram todos pobres, pretos e da periferia.”
O livro de Maria de Fátima foi publicado em 2004 e cobre um período da história brasileira em que a periferia dava sinais de crescimento e os grandes centros urbanos tornavam-se megalópoles. “Estávamos no início dos anos 1980. O Brasil começava um incipiente movimento de transição, chamado de redemocratização. Para esse movimento, a luta pela Anistia teve uma importância capital. Nos anos que se seguiram, muitas publicações documentais, estudos, depoimentos, foram trazendo à luz aquilo que, embora sinistro, não deveria mais ficar nos porões: os elementos que permitiram construir algum saber sobre as situações-limite específicas desta época.”
Conjugando história e psicologia na sua pesquisa, Maria de Fátima estabelece alguns marcos que contribuem para o entendimento do que se passa hoje no Brasil. Não deixando que certos fatos caiam no esquecimento, lembra que, na América Latina, “a prática de tortura exercida pelas ditaduras militares no período dos anos 1960 pôde ser posteriormente reconhecida como coerente e intrinsecamente consistente com esses regimes de exceção. Tais regimes tiveram na doutrina da Segurança Nacional seu fundamento. Em decorrência dessa doutrina, os oponentes do poder, adversários políticos, eram tratados como ‘inimigo interno’, em equivalência ao suposto inimigo externo representado pelo comunismo internacional”.
Maria de Fátima Vicente contribui com o seu livro para o entendimento das raízes históricas que levaram à expressiva vitória eleitoral da direita no Brasil – o retorno dos militares ao poder, agora fortalecidos pelo voto. Já foi amplamente divulgado que, se a via democrática não for suficiente, será adotado o regime de exceção (para gáudio de stalinistas como o filósofo esloveno Slavoj Zizek, para quem o obstáculo à solução política é hoje, justamente, a democracia representativa, claramente em crise: os extremos se tocam, e o caminho da violência está aberto a qualquer um, a começar pela palavra de ordem “armas para todos”, não sendo difícil imaginar no que isso vai dar). Maria de Fátima conclui lembrando que “para tratar o ‘inimigo interno’, foi utilizado o recurso das táticas de guerra, entre as quais a tortura cientificamente planificada e tecnicamente meticulosa foi central.” Página virada de nossa história? Mais do que na hora de se estudar a psicologia do torturador.