Em um dos momentos de grande intensidade dramática da ópera Carmen, conhecido como “cena das cartas”, a bela e sedutora cigana que é a personagem central da trama, ambientada na Sevilha da primeira metade do século XIX, procura desvendar o futuro nas cartas do tarô, ao lado de Frasquita e Mercedes, duas companheiras de bando. A passagem é de difícil execução para as intérpretes do papel-título, em geral meio-sopranos, que precisam alcançar notas cada vez mais graves e soturnas para acentuar o trágico destino reservado a Carmen, em contraste com o canto alegre e jovial de soprano das outras duas ciganas, as quais veem no baralho um horizonte bem mais promissor − enquanto as cartas anunciam a Mercedes a chegada de “um jovem apaixonado que [a] ama como ninguém”, para Frasquita a promessa é o casamento com um velho rico que lhe fará a cortesia de morrer logo e deixar-lhe sua herança.
Já para Carmen, a mensagem − implacável − é sempre a mesma, por mais que ela embaralhe e corte novamente as cartas: a morte próxima. E esta será, como se sabe, o desenlace da trama operística.
Carmen é assassinada a golpes de faca por seu ex-amante, dom José, o soldado que abandonara a caserna e se lançara à vida errante de bandido por causa da paixão pela cigana e não se conforma ao vê-la desfilar ao lado do novo amor, o toureiro Escamillo. No texto que inspirou a ópera de Bizet, a novela Carmen (1845), escrita por Prosper Mérimée, a protagonista também pressagia a própria morte pelas mãos de dom José, por meio de alguns sinais: um padre com quem ela cruzara momentos antes de se encontrar com dom José pela primeira vez (e a visão de um padre certamente era sinônimo de azar para a cigana); uma lebre que passara entre as patas do cavalo daquele que seria seu amante e seu algoz. “Eu sempre soube que você me mataria”, responde ela desafiadoramente a dom José, quando este a ameaça.
Tanto na monumental ópera de Bizet quanto na pequena joia literária de Mérimée, Carmen, a cigana sedutora e selvagem que leva os homens à perdição, resigna-se estoicamente à sua malfadada sina. Mas se ela diz “sim” ao seu destino é porque também obstina-se a dizer não.
No universo da ópera, talvez só o “não” de dom Giovanni, o anti-herói de Mozart, ecoe com tanta força. O “não” de dom Giovanni alcança uma dimensão quase metafísica: quando o galanteador e corruptor de mulheres se nega a se arrepender dos seus crimes diante do fantasma do Comendador, sua vítima em um duelo, não se trata apenas de uma recusa à moral da época ou aos códigos de conduta de uma aristocracia em decadência, na Europa em ebulição às vésperas da Revolução Francesa. Dom Giovanni confronta a divindade, mesmo sabendo que o preço a pagar é a sua alma. Sua insurgência é a da criatura contra o Criador.
O “não” de Carmen a dom José – negativa que selará o funesto destino da cigana – também carrega múltiplos significados. Carmen, em primeiro lugar, diz “não” ao desejo de dom José porque preserva antes de tudo a sua liberdade. A liberdade da mulher que é dona do próprio corpo e do próprio destino, que escolhe a bel-prazer os seus amantes, que vive apaixonada, embora os objetos de sua paixão estejam sempre em contínua mutação – como cantarola o toureiro Escamillo a dom José, em um trecho da ópera de Bizet, “os amores de Carmen não duram seis meses” (“les amours de Carmen ne durent pas six mois”). O “não” de Carmen também representa a rejeição a um modo de vida pequeno-burguês, representado pela possibilidade de casamento e de uma relação monogâmica que dom José lhe oferece, ao propor que ambos recomecem a vida honestamente em outro lugar (no texto de Mérimée, o ex-soldado ainda é mais explícito, pedindo a Carmen que parta com ele para a América, onde ela deveria “se aquietar”).
Por fim, o “não” de Carmen ainda traz uma forte conotação subversiva. É um claro confronto à autoridade, tanto por parte da mulher que repudia o pretendido poder do macho proprietário, encarnado na figura de dom José, quanto do povo que, pela voz rebelde da cigana, insurge-se contra a opressão da burguesia dominante – lembrando que a novela de Mérimée foi publicada em meio ao cenário revolucionário da França de meados do século XIX.
O contraponto a Carmen – não no texto de Mérimée, no qual esta personagem não existe, mas na ópera de Bizet – é Micaela, a donzela da mesma aldeia de dom José prometida a ele em casamento. O papel de Micaela requer uma voz de soprano doce e cristalina, que realce a faceta angelical e ingênua da personagem, em contraposição à voluptuosidade arrebatadora da voz mais grave de meio-soprano de Carmen. Micaela é a imagem do recato, da dedicação, do sofrimento resignado exigidos das mulheres – embora nesta trama em que salta aos olhos a fibra e a determinação das personagens femininas em contraste com a pusilanimidade dos tipos masculinos, Micaela acabe por se demonstrar uma mulher tão corajosa e obstinada quanto Carmen, o que fica patente numa das árias mais comoventes da ópera: Je dis que rien ne m’épouvante (“Digo que nada me fará tremer”).
Na novela de Mérimée, Carmen é descrita como uma cigana de “olhos oblíquos” – viria daí a inspiração de Machado de Assis para a sua Capitu? Dissimulação, malícia, perfídia, a sedução que leva ao abismo – todos esses atributos ficaram como uma marca indelével do caráter tão fugidio dessa fêmea indomável. Mas seria Carmen assim tão traiçoeira?
A relação da cigana com dom José é marcada por uma sinceridade sem rodeios por parte dela desde o início. “Sabe, meu filho, até acho que amo você um pouco. Mas isso não tem como durar. Cão e lobo não dão casório”, avisa ela após o primeiro encontro amoroso com o ainda soldado, para depois emendar: “Não pense mais em Carmencita, ou ela vai fazer você se casar com a viúva da perna de pau [expressão popular para designar a forca]”. Na ópera de Bizet, a canção mais famosa é sem dúvida aquela em que Carmen alerta seus pretendentes para o perigo de se deixar seduzir por seus encantos. “L’amour est un enfant de Bohême,/ il n’a jamais connu de loi./ Si tu ne m’aimes pas, je t’aime;/ Si je t’aime, prends garde à toi!…” (“O amor é um menino cigano/ que nunca conheceu qualquer lei;/ se você não me ama, eu te amo;/ e se eu te amo, toma cuidado!”), diz o célebre refrão da Habanera. A personagem ainda se demonstra leal a seus companheiros de bando e de trapaças e, no texto de Mérimée, quando dom José fica gravemente ferido após um combate, cuida dele com “um desvelo que mulher nenhuma jamais teve pelo bem-amado”.
Carmen leva a vida de acordo com seu próprio código de valores e, por isso, causa tanto espanto e desconcerto. Como diz o crítico Samuel Titan Jr., na figura insubmissa da cigana, “sedução e sedição andam juntas”. Carmen diz não porque diz sim a si mesma – e porque desafia o poder patriarcal, ela deve ser sacrificada.
Belíssimo texto, gostei muito!!!
Obrigada Rosângela por essa exposição tão clara, essa obra de Literatura Comparada, que enriquece nosso conhecimento e eleva nossa sensibilidade.
Que análise fundamentada! Parabéns pelo excelente texto