Ali está o Reichstag, o imponente edifício do Parlamento alemão, com sua comunhão de uma arquitetura mais clássica e uma cúpula de vidro que impressiona. E pensar que aquela cúpula não estava ali. E logo ao lado está o Portão de Brandemburgo, esse marco absoluto da capital alemã. Lugar de festas cívicas e celebrações do arbítrio. E por toda a metrópole uma cicatriz é visível, alicerces de uma divisão que causou danos, dores e lutos. Mas que hoje é história, recordada sempre. Um muro em Berlim não é um muro qualquer. É símbolo maior de uma guerra fria gerada por outra, mundial.
Andar por Berlim é andar por uma memória viva, que grita quando alguém quer desvirtuá-la. A cidade que foi destrinchada em regiões dominadas pelo Ocidente capitalista e pela influência da União Soviética comunista é a melhor aula de história do século 20 que se pode ter. Afinal, a Alemanha foi protagonista das duas grandes guerras mundiais, foi o palco de um transe coletivo que levou à barbárie, foi o butim das potências vencedoras, foi o laboratório de um arranjo político desumano, que separou famílias, fragmentou vidas, interrompeu trajetórias.
Na Alemanha não se aceita lançar mão de subterfúgios para dirimir culpas, não se admite que as lembranças dolorosas se transformem em armas políticas manejadas por discursos revisionistas baratos, por conveniências que se baseiam na ignomínia, não se prestam a matéria-prima para a exaltação da ignorância. Basta andar pelo Tiergarten, o pulmão verde da cidade que foi reconstruído após a destruição quase total. Quem passeia por suas alamedas pode se deter diante de placas que revelam como o lugar ficou após os bombardeios aliados na Segunda Guerra. Meu Deus!
Na longa avenida que corta esse centro histórico de Berlim, a Bundestrasse, tanques soviéticos estão em um memorial para homenagear os soldados soviéticos que pereceram na sangrenta tomada da cidade, decretando o fim da Segunda Guerra Mundial. Os símbolos comunistas estão lá, para quem quiser ver, sendo honrados mesmo que pertençam a um império que não existe mais como existia naquele tempo. Mas não é a União Soviética que está em pauta e sim um momento fundamental da história da Alemanha. E os alemães, independentemente da ideologia, sabem disso.
Não longe dali há o grande memorial que lembra as vítimas do Holocausto judeu. Um conjunto de 2.711 blocos de pedra que formam um labirinto, como se estivéssemos entre lápides de um cemitério de milhões de anônimos, asfixiados nas câmaras de gás, calcinados nos fornos crematórios dos campos de concentração nazistas. E ali do lado uma discretíssima placa informa que onde hoje se ergue um pacato condomínio residencial, nos subterrâneos daquele estacionamento, jaz o bunker de Adolf Hitler, onde ele colocou fim à própria vida e escreveu o capítulo final de sua loucura.
Nem mesmo o monstro é esquecido, mas é devidamente contextualizado. Em um prédio cinza, na frente do qual há ruínas do Muro de Berlim, há um museu com toda a sorte de atrocidades. Na antiga sede da polícia secreta Gestapo, o braço mais violento do regime nazista e responsável por centenas de milhares de execuções, torturas, estupros, saques, foi construído um espaço que conta todos os detalhes desses crimes, batizado de Topografia do Terror. Não há eufemismos, vieses absurdos, má fé política. Há verdades cruas e a admissão de uma mácula vergonhosa.
Percorrer Berlim é se encontrar com o passado por meio de suas narrativas em que o mais importante é informar e refletir sobre o passado e suas chagas e não tentar se aproveitar delas. As fogueiras de livros que os nazistas promoveram na frente na universidade da capital já eram relembradas com um jogo de luzes diante do prédio da instituição e agora um monumento também fará alusão a esses tristes episódios. As sinagogas que foram destruídas na famigerada Noite dos Cristais, início oficial da perseguição efetiva do Estado nazista aos judeus, em 1938, trazem esses relatos.
Os terrores comunistas que Berlim viveu também estão gravados em homenagens e monumentos. No Checkpoint Charlie, lugar onde havia algum tipo de comunicação entre os dois lados do muro, exposições e painéis não deixam ninguém esquecer o que foi a Guerra Fria e quem foram suas vítimas. Nesse local há imagens dos discursos históricos que dois ex-presidentes dos EUA, John Kennedy e Ronald Reagan, fizeram ali em momentos históricos distintos – no auge das hostilidades entre EUA e URSS e já no período da abertura política soviética, a perestroika.
No lado da antiga Berlim oriental, são visíveis traços da presença comunista. Além da Praça Rosa de Luxemburgo, em homenagem à famosa militante de esquerda, e da popular estátua que mostra um papo entre Karl Marx e Friedrich Engels, os autores do Manifesto Comunista, há a enorme torre da Alexanderplatz, a praça central da região, uma construção que servia para antenas de comunicação, mas também para espiar do outro lado do muro. Isso sem falar das amplas avenidas, cercadas por prédios quadradões, onde antigamente os típicos desfiles militares eram feitos com pompa.
Em outro ponto onde uma parte do antigo Muro de Berlim ainda está de pé, um pequeno cemitério, que já estava ali antes da divisão da cidade, é um lembrete. Na frente destas sepulturas – que não podiam ser visitadas por estarem muito próximas a uma zona de guerra –, outras pessoas caíram tentando fugir do inferno comunista, atingidas pelos tiros disparados pelos guardas da antiga Alemanha Oriental. E isso também é esclarecido, sem meias palavras. Do nazismo radicalmente de direita à ditadura de esquerda da Alemanha Oriental, as memórias em Berlim não sucumbem aos discursos absurdos de agora.
Eles são o que sempre foram e não há líder político sério que tenha a pachorra de tentar reescrever esses horrores à sua maneira. Há sofrimentos demais envolvidos para permitir isso. E há por todo o país, a começar por sua capital, dados e provas materiais demais para se pensar em algo assim. Movimentos para revisar tais regimes extremistas até aparecem, mas são tratados com desprezo, quando não criminalmente. Se quem tenta mudar a história desses tempos sombrios andasse por Berlim uma única vez e estivesse disposto a aprender algo, talvez pensasse melhor antes de passar tanta vergonha e desrespeitar tantas memórias.