[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Espaço inaugural
O espaço que se mede
e que se perde
não é o tempo perdido
da memória.
Esquece.
O tempo que se perde
é o mesmo que fenece
a cada hora.
Na hora do homem
em casa.
Na hora do homem
na rua.
Na hora do espanto
desse homem
sem tempo
no espaço de cada canto.
Mas o cansaço do tempo
que se perde
não impede o espaço
que se inaugura.
O espaço do homem
na praça.
O espaço do homem
em luta
com a fúria de outro tempo
: sua surda fúria muda.
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[2]
Os meninos
Verde, verde grama.
Negra, negra madrugada.
– Nas entranhas
dos meninos,
recém-vindos,
um rio corria
para serem ágeis
como pedras lavadas.
Negra, negra madrugada.
– Todavia,
o que corria
pela estrada
era o duro
vento frio,
negro sopro
d’água parada;
poça d’água
morto rio
que secava
nas entranhas
dos meninos
sem mais nada.
Verde, verde,
verde grama.
Negra, negra madrugada.
– Um rosto
em cada poça,
sem cavalo,
sem colheita,
terra batida
e solta,
espantalhos
pela cerca,
morta roça,
os meninos
recém-findos
eram a própria
cavalgada
de cavaleiros
fantasmas
no seu galope
de fome,
feito lobo
feito homem
feito mula sem cabeça
fugindo da noite espessa.
Verde, verde,
verde grama.
Negra, negra cavalgada.
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[3]
A língua
Os lábios se gastam.
O escuro os prende
enquanto a língua
revira a esponja
do verbo prenhe
que diz a longa
missão de légua
por entre a vária
paixão sem leme.
A língua espanta.
Contém saliva
hidrato e fera.
Contém a festa
do bicho em viva
espécie de meta
que se diz salva
na hora avessa.
Vão susto rude
que nos desperta
da baba espessa
de sermos queda.
A língua queima.
A língua enxuga.
Mário a externa
na risca e ruga
do rosto, emblema
lançado à área
da só angústia,
já quente areia
que a chuva mansa
caída amena
amaina e suja.
Sempre a temos.
Cio depois véu
excita os remos
das vozes naves.
Em vão, Orfeu,
na voz dos ventos
(a nau das bodas)
soprou na lira
as águas leves
do mar Egeu,
falando a língua
das noves penas
do seu inferno,
das nove cordas
do seu mistério
que excita as aves.
O escuro a chama.
A língua despe.
A língua lambe
pelos morenos,
monte de vênus.
A língua fere
no som, na carne
que me reflete
homem sem norte.
Pois uso o termo
que já expresso,
rasgada a veste
que fecha o corpo
que fecha a fonte,
fechado esquema
da podre frase
que nos condena.
Língua, vírus, légua
esponja e régua.
Eu Mário, a fala.
Ela, a nossa carta
com o jogo inverso
de me ser forte
se me dispersa,
se me concentra
se me constata
a força exata
de não ser trôpego
nesta palavra
de fogo e fôlego
sem breu nem treva.
Acesa flecha,
liberta fera.
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[4]
Plantio
Lavrado o trato, fica o homem em seu domínio.
Joga o jogo do roçado. Calca a planta do plantio,
cava a cova para a sobra. Mas se o jogo que ele
joga faz do ganho o seu contrário, dá em troça
com o contrato então lavrado.
Cava,
então descansa.
Enxada: fio de corte corre o braço
de cima
e marca: pés, pés de barro.
Cova.
Joga,
então não pensa.
Semente; grão de poda larga a palma
de lado
e sonda: foz, foz de água.
Cava.
Calca
e não relembra.
Demência; mão de louco lança a pedra
de perto
e sopra: céu, céu de treva.
Cova.
Molha
e não dispensa.
Adubo; pó de esterco mancha o lodo
de longo
e forma: nó, nó de mofo.
Joga.
Troca,
então condena.
Contrato; quê de paga perde o ganho
de hora
e troça: mais, mais de ano.
Calca.
Cova:
e não se espanta.
Plantio; fé e safra sofre o homem
de morte
e morre: rês, rés de fome
cava.
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[5]
Forca na força
_
a palavra na boca
na boca a palavra: força
a forca da palavra força
a palavra rolha fofa
a rolha fofa sem força
a palavra em folha solta
a força da palavra forca
a palavra de boca em boca
na boca a palavra forca
a palavra e sua força
_
falar na era da forca
calar na era da força
na era de falar a forca
a era de calar a boca
na era de calar a boca
a era de falar à força
calar a força da boca com a forca
falar a boca da forca com a força
calar falar a palavra
não na ira da era ida
falar calar a palavra
nesta ira de era viva
calar a palavra na era ida da ira
falar a palavra na viva era da vida
_
mas a forca da palavra força
:um cedilha em sua boca
Perfil
Mário Chamie nasceu em Cajobi (SP) em 1º de abril de 1933 e morreu na capital paulista em 3 de julho de 2011, aos 78 anos. Em 1956, formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da USP. Com erudição e criatividade, dedicou-se à crítica e ao ensaio literário, sem fugir das polêmicas, seja com os concretistas, seja com bons-mocinhos da cultura brasileira. Teve atuação destacada no final da década de 1950 nas vanguardas paulistanas. Em 1962, publicou Lavra lavra, livro de poemas que instaurou a Poesia Praxis, movimento de vanguarda que se opunha ao Concretismo dos irmãos Campos e de Décio Pignatari. No posfácio, o livro apresenta o manifesto que expõe os fundamentos dessa poesia. Como suporte do movimento, lançou a Revista Praxis, que sobreviveu até o seu quinto número. A partir de 1963, realizou uma série de conferências sobre literatura brasileira em diversos países da Europa e do Oriente Médio. Em 1964, a convite do Departamento de Cultura do Departamento de Estado do governo dos EUA, organizou e realizou palestras sobre problemas de vanguarda artística nas universidades de Nova York, Columbia, Harvard, Princeton, Wisconsin e Califórnia. De 1979 a 1983, ocupou o cargo de secretário municipal de Cultura de São Paulo, promovendo a inauguração da Pinacoteca Municipal, do Museu da Cidade de São Paulo e do Centro Cultural São Paulo (CCSP). Concluiu em 1994 doutorado em Ciência da Literatura na UFRJ. Foi professor titular de comunicação comparada da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Ao longo de sua carreira literária, recebeu vários prêmios, entre os quais o Primeiro Prêmio Nacional de Poesia (SP) e o Prêmio Jabuti A sua obra poética compreende os seguintes títulos: Espaço inaugural (1955), Configurações (1956), O lugar (1957), Os rodízios (1958), Lavra lavra (1962), Now tomorrow mau (1962), Indústria (1967), Conquista de terreno (1977), Planoplenário (1974), Objeto selvagem (1977, poesia completa), Configurações (1977), Sábado na hora da escuta (1979, antologia), A quinta parede (1986), Natureza da coisa (1993), Caravana contrária (1998), Horizonte de esgrimas (2002). Quanto à sua obra crítica e ensaística, publicou: Palavra-levantamento (1963), Alguns problemas e argumentos (1968), Intertexto (1970), A transgressão do texto (1972), Instauração Praxis, v.1 e 2 (1974), A linguagem virtual (1976), Mário de Andrade – Discurso carnavalesco (1979), A falação possessória (1991), Caminhos da carta (2002), A palavra inscrita (2004). Escreveu ainda Pauliceia dilacerada (2009, memória e ficção).
Confira a seguir um vídeo sobre o poeta: