Um grito calado há 38 anos, doido para ser libertado a plenos pulmões. E quando o Flamengo conseguiu virar o jogo contra o River Plate na final da Copa Libertadores da América, nos últimos minutos, o êxtase se fez. Uma verdadeira catarse parece ter sido vocalizada em cada berro de desesperada alegria, em cada expressão contraída de nervosismo e ansiedade, em cada lágrima derramada diante do imponderável. Uma das maiores finais que o futebol brasileiro já viu. Com o time mais popular do País.
No início da noite do sábado, dia 23 de novembro de 2019, nenhum dos graves problemas com os quais padecemos foi resolvido. Desemprego continua alto; violência só piora; racismo está disseminado e agora é apoiado por autoridades desavergonhadas; palavras e ações fascistóides ganham terreno; o presidente e seus ministros não têm compostura mínima; investigações são bloqueadas; ninguém sabe ainda quem matou Marielle, quem assassinou Ágatha. Continuamos a ir para o brejo.
A centelha de felicidade daquele sábado, vinda lá das margens do Oceano Pacífico, não tem o poder mágico de interromper nossos sofrimentos e não deveria mesmo dar alguma solução para as nossas tragédias cotidianas. Ela, porém, tem o poder de renovar o espírito de dezenas de milhões de torcedores do Mengão, um sopro fresco em uma atmosfera que fica a cada dia mais pesada e asfixiante. Não é ópio do povo, porque a segunda-feira chega com suas contas e seus desafios. Não é anestesia, já que há dores incontroláveis. Mas um sorriso é sempre um sorriso.
A garganta foi embora, o choro veio incontrolável, os abraços, os palavrões saindo do íntimo com alívio como se retirássemos pedras do sapato. E esse jeito apaixonado com que lidamos com o futebol é uma válvula de escape que, cada vez menos, funciona efetivamente como instrumento para oportunistas de terno, gravata e mandato, ainda que as tentativas nesse sentido sejam numerosas. Nos anos de chumbo da Ditadura Militar, no período mais duro do governo Médici, o tricampeonato mundial da Seleção Brasileira serviu a interesses escusos. Esta estratégia mostra-se mais arriscada.
O presidente muda de camisa a cada jogo, o governador quer engraxar a chuteira do artilheiro e tem a cara de pau de se imiscuir na comemoração alheia, mas se eles acham que isso dá resultado sem danos, enganam-se. Muitas pessoas percebem esse tipo de jogada rasteira e a condenam, não mais permitindo que sejam usadas impunemente. O grito de gol é genuíno; já o aproveitamento político dessa emoção é triste e repugnante. Mesmo que haja diretorias subservientes e interesseiras, elas também não devem ser confundidas com o time do coração, com a paixão que os clubes despertam.
No mais, é hora de celebração para a nação rubro-negra. Festejar a marra tatuada de Gabigol, o menino da Vila que veio para a Gávea fazer história. Festejar a velocidade estonteante de Bruno Henrique. Celebrar os maestros do meio-campo Arrascaeta, Everton Ribeiro e Diego, mesmo que este entre apenas nos momentos decisivos. Elogiar a força e a lucidez de Gerson, de William Arão. Extasiar-se com a precisão nos cortes dos zagueiros Rodrigo Caio e Pablo Mari, com as investidas mortais dos laterais Rafinha e Felipe Luís. É hora de louvar a segurança de Diego Alves no gol e o xadrez tático de Jorge Jesus, o Mister, o português que redescobriu o futebol brasileiro.
É hora, flamenguistas, de sorrir. É hora, flamenguista, de aproveitar essa felicidade que, como todas as outras, é efêmera, mas que, como todas as outras, deixam na memória lembranças que deixam a vida mais doce, mesmo em um Brasil tão amargo.