Em uma matéria veiculada há algum tempo no Público, sobre Sam Peckinpah (1925-1984) e sua inesquecível contribuição ao western, afirma-se ter o cineasta levado o gênero “a um apogeu no momento em que estava a morrer. Ele não matou o gênero. Ele fez a crônica dessa morte”.
Com efeito, “Bloody” Sam, o “poeta da violência”, conseguiu revisitar o faroeste de maneira a demonstrar a derrocada do romantismo que permeava as narrativas dessa estirpe, juntamente ao próprio fim espaço-temporal delas. Em verdadeiras obras-primas, como The Wild Bunch (Meu Ódio Será Sua Herança, 1969) e Pat Garrett & Billy The Kid (1973), está sobremaneira evidente a melancólica brutalidade do contexto histórico-geográfico em questão, isto é, o final do século XIX e início do XX no oeste estadunidense e norte-mexicano, outrora selvagens e palco de gloriosas aventuras, mas agora tragados pela modernização velocífera. Neste momento, o fim incontornável de uma era, apenas a crueza, simbolicamente poética, de intenções e ações de homens defasados e solitários, mas fortes e determinados (semelhantes ao hércules quasímodo de Euclides da Cunha), tem motivo de existir.
A dicotomia moral, invariavelmente à tona nos bangue-bangues, quase sempre teve contornos pouco tênues. Mocinhos em frente a vilões ou cowboys a indígenas e o bem bate-se com o mal ou vice-versa, guardadas ocasiões excepcionais de caracterização das personagens. Em Peckinpah, esses tons misturam-se de forma indissociável. Rigorosamente, em suas produções parece não existir bem e mal senão como faces equivalentes de uma moeda cujo toss decidirá eternamente pelo fim do Velho Oeste.
Não à toa, encontra-se presente, tanto nos aludidos filmes quanto em The Ballad Of Cable Hogue (A Morte Não Manda Recado, 1970) e outras obras do cineasta, o estranhamento diante da tecnologia e dos novos tempos. Homens prefixados no determinismo de seu ambiente espantam-se ao ver automóveis, o signo máximo da obsolescência da cavalaria, ou metralhadoras modernas, tão potentes perto de suas espingardas e pistolas. A inocência e a violência dialogam em espécie de ouroboros niilista e colérico.
A vida e o destino dessas personagens são sempre cruéis. Sua mentalidade é cruel a ponto das machezas mais excessivas, significativas porque estampadas em rostos que não sabem senão expô-las ordinariamente. O que não implica personalidades rasas, antes pelo contrário. A complexidade de emoções, por exemplo, de Pat Garrett e Billy The Kid, antigos companheiros mas em decorrência das posições que adotaram entregues à caça mortal um do outro, é acachapante. Há uma cena no filme (cuja trilha sonora, diga-se en passant, é de Bob Dylan, que também atua), afinal, que sintetiza muito do trabalho de Peckinpah. Trata-se de Pat, um conhecido fora da lei recém-convertido a xerife, no momento em que mata Billy, estandarte do faroeste ortodoxo, e o confunde com seu reflexo no espelho, alvejando também sua própria imagem. Acontece, pois, o homicídio e o suicídio das duas faces equivalentes da moeda, e o Velho Oeste deixa cair suas rubras cortinas.
Sam Peckinpah foi um homem temperamental, polêmico, de excessos, mas não são raros os depoimentos nos quais sua delicadeza tímida foi expressiva. Isso aponta ao tratamento dado aos filmes que dirigiu. Descendente de pessoas que viveram o faroeste, conseguiu sentir na pele suas últimas vibrações e transmitiu-as tão incrivelmente que é necessário colocá-lo nas fileiras dos gênios da raça dos cineastas.
A extenuante e bela violência que levava às telas, muita vez por meio de slow motions revolucionários e que lhe valeu os citados apelidos e epítetos, o clima embrutecido e melancólico, foram e são fontes de inspiração para vários diretores consagrados de gerações posteriores, como Martin Scorsese e Quentin Tarantino.
Sua obra não abarca somente o western. Há outras realizações primorosas, como Straw Dogs (Sob O Domínio Do Medo, 1971) e Bring Me The Head Of Alfredo Garcia (Tragam-me A Cabeça de Alfredo Garcia, 1974), dentre outros filmes extremamente dignos de nota e cuja melhor análise exigiria textos particulares. Está disponível na internet o documentário Sam Peckinpah: Man Of Iron, de 1993. Um viva à obra do poeta da violência.