Quando os vivos estão mais mortos que os mortos, é preciso que um evento súbito e arrebatador nos acorde ou nos mate de vez. Foi assim no tempo do Dilúvio, na Florença de Decamerão e assim acontece no Brasil de Bolsonaro. É claro que eu não acredito em Deus, com o que não poderia acreditar em maldições, mas parece que essa pandemia de coronavírus está sepultando aos poucos os mortos-vivos. Sou otimista? Leiam isso simbolicamente: enterrar um morto-vivo significa arrancar-lhe do estado dormente e pouco inteligente em que uma pessoa pode engajar-se durante um tempo – serve para pessoas batizadas, para gente de caráter suspeito, para esquerda e para direita. O fato é que podemos acordar, mesmo que gripados, para morrer conscientes das consequências de nossa inação.
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Mortos-vivos, zumbis, revenants – não são apenas narrativas com protagonistas de rostos desfeitos em sorrisos constrangedores e tripas de fora; essas narrativas nos colocam na situação de pensar como seria o fim da humanidade (a expressão “fim do mundo” é egocêntrica demais, o planeta Terra está esgotado, mas, em se livrando da gente, talvez se recupere). E muitas cabeças férteis de imaginação já criaram narrativas que nos ajudam a pensar com esses corpos insurrectos.
George Romero, por exemplo, nos ensinou a ler nessas figuras que se arrastam em busca de carne humana uma horda potencialmente revolucionária que desestabilizaria o status quo da desigualdade social. De uma maneira diferente, os mortos de Extermínio (2002) não se arrastam, eles correm em alta velocidade, estão tomados por um vírus e não buscam outro corpo para se alimentar e sim para retransmitir sua doença. Assim é que, ao assistir a filmes como A Noite dos Mortos Vivos (1968), eu torço para os ambulantes canibais e, diante de filmes como o do Danny Boyle, sou obrigada a reconhecer esses mortos raivosos como uma alegoria da lógica perversa dos processos de modernização: para as colônias, mandaram padres e outros sujeitos desprezíveis que nos zumbificaram com ideias de salvação e civilização; o iluminismo apagou as práticas de alteridade em nome de um universalismo de paróquia; as vanguardas transformaram os Outros que sobraram do mundo colonizado no Mesmo de uma Europa mofada e caquética; na globalização das mídias sociais, cada novo contato adicionado me transforma em uma descerebrada porque, vale lembrar, uma pessoa contaminada/mesmificada não se relaciona com ninguém a não ser consigo mesma; no passado recente ou no presente insuportável, participo de uma acumulação de corpos que se unem numa horda. O contágio, a grande doença, é essa vontade de transformar o outro em si mesmo.
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Há ainda uma terceira possibilidade de leitura no universo zumbi: séries de tv como The Walking Dead mostram que é sempre possível, senão eliminar, ao menos utilizar os infectados a favor da sobrevivência de uma minoria. Tal foi a proposta de nosso ministro da economia Paulo Guedes et caterva para “salvar” o Brasil: tudo bem se morrerem umas tantas mil pessoas, se outras tantas saírem dessa crise com deficiência respiratória e desempregadas, se tantas mais descerem para o lado de baixo da linha de pobreza. Como escolher quem vai morrer, perguntou-se a mídia indignada. Sim, aquela mesma que se omitiu tantas vezes. Eles já estão escolhidos – é a resposta que encontro no romance de Ana Paula Maia com título Assim na Terra como Embaixo da Terra (2017).
Essa jovem autora mulher negra nos desafia a encarar um fato do qual sempre desviamos o olhar: quem vai adoecer, quem vai passar fome, quem vai levar uma “bala perdida”, quem vai ser caçado como um animal são os corpos marcados dos filhos dos filhos dos filhos dos pretos e indígenas escravizados e animalizados. Neste romance, conta-se (parece um roteiro de cinema) a história de uma colônia penal cuja localização não conhecemos. O momento temporal em que se insere a narrativa também fica indefinido. Sabemos apenas que essa espécie de presídio está prestes a ser desativada. Que o espaço interno é amplo, com árvores, curral, dormitório para os presos, casa administrativa para o militar Melquíades cuidar de tudo. Que o refeitório também tem seu pavilhão à parte. Que os muros são altos.
A narrativa começa quando Melquíades, talvez com a boa intenção de agilizar o fechamento daquele sítio fortificado, decide caçar um prisioneiro por noite até eliminar todos os comensais. Trata-se de um jogo. Melquíades escolhe dois presos por estupro seguido de morte e lhes diz:
– Vocês são homens quase livres, agora. Só vou falar uma vez, então prestem atenção: vocês têm a chance de sair de entre os muros, mas é só uma chance, que eu considero remota. – Ergue um cronômetro. – Quando eu der o sinal, vou cronometrar trinta segundos, e nesse tempo vocês podem correr para o mais longe que conseguirem. Mas se eu e o meu rifle CZ22 fabricado na Tchecoslováquia e de longo alcance encontrarmos vocês, nunca mais deixarão este lugar, entenderam? Evidente que nunca ninguém conseguiu escapar, e todos permanecem aqui para todo o sempre. É uma medida socioeducativa (2017, p. 57)
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Bem, disse nosso ilustre presidente da república Jair Messias Bolsonaro: favelado preto pobre puta já nasce com imunidade a todo tipo de doença, pois nunca teve saneamento básico mesmo. Vivem mal de qualquer maneira. Com coronavírus ou sem coronavírus. Na terra como embaixo da terra.