Parte 1
A hipótese mais provável é a de que o aumento da temperatura média do planeta tenha sido uma das causas do apocalipse. Zombaram dos alertas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). O smog durou exatamente seis dias inteiros, seis noites inteiras, encerrando-se às seis horas do sétimo dia. Tempo suficiente para que as trevas se espalhassem pelas cidades: “Aquele que tem entendimento, calcule o número da besta; porque é o número de um homem, e o seu número é seiscentos e sessenta e seis”, vociferou o Pastor, enquanto acumulava víveres doados pelos ingênuos fiéis. Ao aumento da temperatura, um evento no atacado, somaram-se os “coquetéis de agrotóxicos”, evento no varejo. Zombaram da pesquisadora que advertiu sobre a presença de agrotóxicos nas redes de abastecimento de água de milhares de cidades. Negacionistas, utilizando-se de memes agressivos e campanhas difamatórias, chamaram-na de Hera Venenosa. Acredita-se que a junção dos dois eventos afetou, em níveis distintos, o sistema nervoso central de milhões de pessoas. O simples fato de beber água tornou-se motivo de pânico. O burguês parasita representado nas charges de Honoré Daumier (1808-1879) deu lugar ao burguês pálido, desidratado, encardido. O quintal de cada um, mais importante que o quintal do vizinho, passou a ser protegido por unhas, dentes e armas, muitas armas. Depois de rompidas as cercas da propriedade privada, os sobreviventes tentaram a sorte nos templos. Naquele momento deram-se conta de que havia mais templos que escolas, museus, bibliotecas. Repetiram o enredo de Madrugada dos Mortos, com uma diferença: na ficção, refugiam-se no shopping, templo do consumo; na realidade, refugiaram-se nos templos que consumiram, durante muito tempo, suas almas. Promessas foram cobradas. Nenhum retorno. A fatura foi enviada para pastores e padres que só podiam, como de costume, culpar as condutas terrenas, enquanto corriam para fechar as portas dos templos, deixando os fiéis do lado de fora. O antigo isolamento físico dos zumbis tradicionais, como pedintes, desempregados e trabalhadores precarizados, formadores do lumpenzumbiariado, não durou muito tempo, como também a negação de todos aqueles que não se encaixavam na mediana normativa social. As fortalezas foram consumidas por dentro e pressionadas por fora. Os campos não produziam mais excedentes. As jaqueiras no Rio de Janeiro foram tão úteis quanto as mangueiras em Belém. Mas a dieta das frutas, sazonal, durou pouco tempo. As vacas não jorraram mais leite. Sem saber como produzir, aquela sociedade, outrora ocupada exclusivamente em consumir, disputou as rebarbas da sociedade pós-industrial. Corriam notícias sobre a prática de canibalismo. Não foi de um momento para o outro. Experimentaram, primeiramente, cães. Dóceis, fáceis de abater. Os shih tzus e os chihuahuas, encontrados em abundância nos apartamentos dos idosos moribundos, serviram de entrada. Quanto menos pelos, melhor. Encerrada a oferta canina, seguiram-se, como era de se esperar, os gatos e, depois, os pombos. A nova dieta trouxe de volta velhas febres. Nada fácil. Só mais tarde, nas grandes cidades, descobriram os zoológicos. Açougues em escala extraordinária. Da proteína animal para a “proteína humana” foi um pulo só. Antidepressivos tornaram-se as mercadorias mais cobiçadas. Uma espiga de milho, no mundo temperado, mais valorizada que um quilo de trufa. Nada de consumo conspícuo. Nada de excedente. Transformaram-se rapidamente em nômades coletores das rebarbas da sociedade pós-industrial. Assim, entraram forçosamente em contato e disputaram os víveres com o antigo lumpenzumbiariado. A hostilidade foi inevitável. A fraqueza física e emocional da orgulhosa classe média foi exposta. Da elite, aquele 1% mais abastado, ninguém teve notícias. Sabe-se apenas que a classe média suportou por pouco tempo o fardo de representá-la. O rabugento Jessé de Souza sempre esteve certo! Os mais fracos de ontem, acostumados com o calor, o frio, as privações alimentares e, sobretudo, a indiferença dos homens e mulheres de bem, possuidores de fortalezas e templos, ascenderam ao topo da pirâmide social. A sociedade, pela primeira vez, admitiu sem pudor a fragmentação do tecido social. Uma nova hierarquia. Uma nova divisão do trabalho. Sem tribunais e, portanto, sem juízes. Sem igrejas e, portanto, sem profetas. Sem escolas e, portanto, sem professores. Os coaches finalmente deram-se conta de sua inutilidade. Nada tinham para ensinar além da engenharia da sobrevivência. O Manual do Professor Pardal (Disney, 1994), naqueles tempos, foi mais útil que as lições de dezenas dos antigos reality shows de sobrevivência. Sem seus zumbis-telespectadores, Bear Grylls, com sua pederneira, vagou por alguma floresta temperada, murmurando com as árvores e tentando, sem sucesso, acender sua fogueira. Enlouqueceu! A ficção converteu-se em realidade. O antigo mundo, formado por financistas, políticos, técnicos, intelectuais, médicos, cientistas, gerentes de banco etc., pereceu. O darwinismo, disse o crente, finalmente venceu. Tudo o que era sólido desmanchou-se no ar, lembrou, com ironia, o anarquista. Os dois foram enterrados na mesma cova rasa.
Parte 2
Sem governo para preservar a “propriedade” e as antigas estruturas de classe, funções descritas pelo filósofo John Locke (1632-1704) em Segundo Tratado sobre o Governo, também não houve necessidade de política, em qualquer escala institucional. A negação da política fez o homem retornar, inevitavelmente, ao estado natural do barbarismo. Queimaram-se os livros, não necessariamente pela mensagem que encerravam. Isso já não importava muito. Queimaram-nos como combustível para aquecer as noites frias. Sem água encanada, sem energia, sem banho quente, sem esgoto, tiveram, pela primeira vez, que conviver com os próprios excrementos. Aquele mundo encaixado, regulador do tempo cotidiano, fragmentado por diversos compromissos (trabalho, escola, lazer, compras, shopping, salão de beleza, pet shop, fins de semana no clube etc.), tornou-se obsoleto. Deram-se conta de que as redes de infraestrutura de comunicação e transporte eram simplesmente a materialização do trabalho, pouco valorizado, de outros humanos. Que o monopólio das redes de infraestrutura pelo Estado, afinal, não era tão ruim! A própria noção de moeda, dinheiro, valor, renda, perdeu o sentido. A cartografia territorial deixou de existir, levando consigo os caducos discursos nacionalistas. Comunidades de interesses foram criadas em várias cidades do planeta. As favelas cariocas, favorecidas pela geologia, funcionaram por algum tempo como barreira natural para os zumbis que não conseguiam escalar as rochas cruas em razão de sua condição motora. A Urca tentou inutilmente subir para a Babilônia. Não aceitaram, sequer, a entrada do Rei. Nos túneis, em cidades como Paris e Nova York, formaram-se comunidades que tentaram, sem sucesso, sobreviver às intempéries. As muralhas antigas, objeto de turismo, não funcionaram sequer como barreira provisória. Jerusalém caiu pela milésima vez. Anciões cegos relataram que a hecatombe fora gerada pelo nacionalismo dogmático e sua obsessão por armas e muros. A lenda, repassada pela tradição oral, ensinou que um louco tupiniquim, armado com uma bomba de dióxido de carbono (CO2), acabara com o mundo! A lembrança do Estado social, que garantira condições mínimas de subsistência para os mais vulneráveis, foi socializada com nostalgia pelos velhos moribundos – contos de fadas! Como em The Walking Dead, os grupos humanos ficaram à mercê – quando lograram sucesso – de tipos como Negan. Lucille substituiu com eficácia as constituições e os códigos nacionais que já não funcionavam. A antiga e temida potência militar do planeta sucumbiu diante da tolice. No monte Rushmore, os bustos de George Washington, Thomas Jefferson, Theodore Roosevelt e Abraham Lincoln, antes mesmo da hecatombe, haviam sido substituídos pela figura pálida e patética de Donald T. Duck – um péssimo presságio. Homer Simpson foi cultuado como símbolo da inteligência nacional. De modo sincronizado e submisso, no Brasil, o título de patrono da Academia Brasileira de Letras foi retirado de Machado de Assis e dado, por decreto, a um astrólogo fumante armado com uma Winchester. Argumentaram, com base em documentos retirados de grupos no WhatsApp, que o proprietário de uma fábrica de machados não poderia receber tal honraria. Esse foi o ápice da imbecilidade. As sociedades lembraram, quando lhes foi permitido contar histórias, dos burgos medievais e de seus amáveis senhores. Com nostalgia, recordaram-se de um tempo em que a burguesia sonhava em libertar-se dos fantasmas. Liberté, egalité, fraternité. Uma época revolucionária, também gênese da cientificidade moderna. Uma época de descobertas e de otimismo. Um velho professor de filosofia, com a mão calejada, lembrava, enquanto se ocupava de reparos do muro de madeira do burgo Rebouças, que Hannah Arendt (1906-1975) ensinara que a política é fermentada pela pluralidade dos homens e nunca, jamais, deveria ser confundida com a violência. A violência eliminou qualquer possibilidade do fazer político no interior dos burgos, tornando-se termômetro das relações cotidianas. Ao negar a política, aqueles que sobreviveram apostaram todas as fichas nos instintos primitivos. O velho nunca soube que tipo de zumbis provocavam mais medo: os que restaram no interior do burgo ou os que vagavam pelas florestas e ruas de cidades inabitadas. Em silêncio, o velho aguardou, faminto, a morte. Não se adaptou, quando jovem, ao laissez-faire neoliberal – seu pensamento lento não era competitivo! Tampouco conseguiu, quando adulto, sustentar-se com trabalhos precários – com o suor do teu rosto comerás o teu pão. Faminto, voltou ao pó. Não teve epitáfio. Só as sociedades com memória possuem epitáfio.
Parte 3
Os grupos humanos começaram a lembrar que o passado fora diferente. Procuraram lugares para discutir e tirar lições do passado. Encontraram, nos museus, sementes crioulas. Esperança de renascimento da agricultura. Recomeçaram do básico. Mandioca, farinha. Milho, fubá. Trigo, pão. Os velhos ofícios, extintos pela sociedade pós-moderna, renasceram e foram valorizados. Não esqueceram de cultivar o intelecto. Aprenderam a valorizar os antigos espaços públicos, especialmente as praças. Os velhos professores, enfim, tiveram alguma utilidade. Recordaram que lutamos, com distintas armas, contra o fascismo, o socialismo, o capitalismo, o terrorismo, sem que isso levasse ao fim completo da humanidade. Antibióticos e as mais diversas vacinas, produtos do conhecimento construído, acumulado e socializado, não apenas salvaram vidas, mas tornaram vidas melhores. Lembraram que alguns países tropicais, mesmo que tardiamente, acabaram com a escravidão e que as mulheres tinham garantido o direito de lutar por seus direitos. O professor de biologia lembrou que havia escolas de todos os tipos e tantos outros lugares que cultivavam ciência, arte e poesia. “Ciência, já fizemos isso”, recordou um antigo professor de química, amante da alquimia moderna e de histórias em quadrinhos. E, para aqueles que insistiam em se curvar diante dos déspotas, o comediante lembrou que Os Simpsons frequentemente sacaneavam a maior potência militar do planeta e que dois homens, chamados Albert Einstein e Sigmund Freud, trocaram correspondências sobre a guerra e a paz. O aspirante a arqueólogo descobriu um memorando de um cientista chamado Ricardo Galvão, alertando a todos sobre o impacto das queimadas. O messias da época (não se sabe, em função da ausência de registros escritos e da pouca confiabilidade dos relatos orais, qual era o regime político do país em questão!) preferiu ocupar seu tempo assistindo filmes de ficção como Waterworld, protagonizado por Kevin Costner, talvez a pior película apocalíptica de todos os tempos! O velho professor de história lembrou ainda que existia gente que professava o terraplanismo, mas, nem por isso, seus corpos alimentaram fogueiras – era somente um punhado de gente bobinha, como aquele cara de cabelos arrepiados que falava de extraterrestres na TV por assinatura. Só que não. Os sobreviventes deram-se conta de que, muitas vezes, a tolice e a brutalidade caminhavam juntas. Voltaram a cultivar a razão e a não aceitar, sem luta, o destino. Reviveram as escolas e, em seguida, as universidades. Teatros surgiram como cogumelos após um curto período chuvoso. Reviveram os gregos, mas não apenas Aristóteles e Platão. Interpretaram, cantaram, sussurraram pelos quatro cantos do planeta o poema À Espera dos Bárbaros, de Konstantinos Kaváfis. Estimularam a produção do conhecimento e da pesquisa. No currículo, obrigatoriamente, muita ciência, muita filosofia, além de artes e poesia. O efeito nas crianças foi avassalador. Fotos dos palhaços Krusty, Bozo e Pennywise, na porta de cada sala, alertaram-nas sobre a função das máscaras na sociedade. Elas aprenderam que o medo e a ignorância alimentam desejos despóticos. De posse de um dicionário não incinerado, aprenderam que democracia é mais que a junção de povo (demo) e governo (kratia). Foi uma forma pretérita, imperfeita, de tentar solucionar conflitos e, por conseguinte, adiar o apocalipse zumbi. Uma epifania tomou conta de todos. Muitos foram tomados pela imperativa necessidade de iniciar novamente aquela longa jornada do sapiens, sabendo, tomara, que a Velha Arca não salvaria mais ninguém. Se Deus quiser, desta vez, estarão sozinhos!
Fragmentos do livro Ciência x Zumbis, Quando a Batalha Começa na Escola. Goiânia: Besta Fera Editorial, 2020. Ilustrações de Priscila Barbosa. In: Disponível em: https://www.amazon.com.br/Ci%C3%AAncia-Zumbis-Quando-batalha-come%C3%A7a-ebook/dp/B086QDZQYK/ref=sr_1_1?__mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3%95%C3%91&dchild=1&keywords=CIENCIA+x+zumbis&qid=1590960846&sr=8-1.