“As mercadorias não morrem” (Davi Kopenawa em “A queda do céu”, p.409)
No dia 15 de setembro de 2008, a falência do banco Lehman Brothers (fundado em 1850), um dos maiores e mais tradicionais bancos do centro da economia mundial, dava início ao primeiro fim do mundo do século 21. Deu no New York Times: era o fim do mundo!
Os assim chamados especialistas do mercado tentaram, e ainda hoje tentam, nos explicar as razões e a forma como o mundo estilhaçou em 2008 com patéticas explicações sobre o fenômeno, sobre a superfície do problema. Como se alguém morresse de espirrar e não de gripe.
Neste conto de fadas e farsas ainda vigente, todo o problema do colapso de 2008 se deu por conta de uma alargada liberação de crédito (empréstimos) para pessoas sem capacidade pagadora comprovada.
Percebam que nessa rasa versão daquele fim do mundo de 2008, os responsáveis são os pobres (nos EUA leia-se latina(o)s, negro(a)s, imigrantes, etc.). Em suma, em 2008 o mundo desabou por culpa dos pobres que são incapazes de pagar justamente por serem pobres. Os séculos de aviltamento e de exploração que os tornaram pobres, e por tanto incapazes de pagar, ninguém menciona [1].
Mas os empréstimos de alto risco (subprime) não pagos e todos desdobramentos deles advindos [2] são só a forma de aparecimento do problema, o fenômeno que aparece na superfície do fim do mundo de 2008. Não preciso dizer a vocês que a forma de aparecer das coisas via de regra é incapaz de evidenciar sua essência.
Para explicar em um parágrafo, são os parasitas do mercado que promoveram aquele fim do mundo em 2008. Ao longo do longo século 20, a (re)produção ampliada do capital ruma substancialmente do produtivo ao especulativo. Produzir mercadorias é trabalhoso demais, comprar uma ação (um título de dívida pública, investir num fundo…) e esperar a hora de vendê-la é bem mais simples e pode ser bem mais lucrativo e rápido. A –literalmente – meia dúzia de donos do dinheiro do mundo se tornam meros apostadores neste imenso capitalismo de cassino[3].
Se o fim do mundo de 2020 tem cara de vírus, o fim do mundo de 2008 tem cara de parasita. Mas qual o elo entre os dois fins deste mesmo mundo? Como parasitas geram vírus?
A pandemia em curso nesse fim de século-vinte-e-um-de-vinte-anos é só uma entre as muitas outras tantas possíveis de se efetivarem em escala mundial. O capitalismo que ainda produz algo (e não só parasita) precisa ser cada vez mais competitivo, ampliando suas taxas de lucro, potencializando seu sistema produtivo, ampliando sua capacidade produtiva.
O capital que produz precisa ser cada vez mais destrutivo: avança sistematicamente sobre o que resta de áreas naturais no planeta e promove a intensificação desenfreada na produção de alimentos, tanto em grandes monoculturas industrializadas e transgênicas como em grandes fazendas de criação de porcos, gado e frangos. Para ser lucrativo (razão única e suprema do capital), tem que produzir mais em menores espaços e em menos tempo. De um lado, o avanço da urbanização e das plantações em forma de monocultura põe fim a complexos sistemas de biodiversidade, favorecendo a disseminação de pragas. De outro, a grande concentração de animais confinados sendo bombados para crescer e engordar em tempo cada vez mais curto favorece a proliferação e a hiper-evolução genética de uma gama de vírus cada vez maior e mais complexa[4].
O elo evidente e inquestionável entre o fim do mundo de 2008 e o de 2020 é a forma de organização econômica desta sociedade, que corrói o planeta e submete a humanidade à barbárie. O humano não é um câncer, foi o capitalismo que deu metástase[5].
Em religiões e mitologias variadas, o mundo acaba com a chegada do salvador ou da salvação. Um fim sem continuação. Um fim com ponto final! Mas os dois finais do mundo deste século que durou 20 anos são finais sem fim, vão minuciosamente se perpetuando como um fim continuado, arregaçando a possibilidade do fechamento, impondo um fim como forma de continuação: um fim contínuo. Uma continuação sem fim.
Notem que o fim do mundo nas mais variadas religiões, crenças e mitologias se dá pra nos libertar das mazelas mundanas. Um dos fatores que une os dois fim dos mundo do século de 20 anos não nos liberta dos fatores que promoveram o fim, mas ao contrário nos sufoca, nos estraçalha com a sádica continuação do que promoveu ambos os fins, o de 2008 e o de 2020, fins sem final!
Botar um fim definitivo nesta forma econômica de organizar o mundo é o único caminho para evitar esse fim continuado.
Notas
[1] Uma pessoa menciona: Denise Ferreira da Silva. O argumento que reproduzo aqui tomo emprestado dela. Me deparei com ele um uma live desta pensadora para a Escola de Artes Dramáticas da Universidade de São Paulo. Em: https://www.youtube.com/watch?v=FJ7wf4Gc_y4
[2] Em precária e reduzida síntese: os empréstimos eram lastreados em hipotecas que viraram títulos que os bancos emprestadores venderam no mercado em forma de papéis especulativos. Quando as taxas de juros começaram a subir (estratégia básicas de contenção da inflação), as parcelas dos empréstimos foram ficando maiores e a capacidade de pagá-las menores. Os empréstimos passam a ser não pagos e as hipotecas passam a ser efetivadas, mas a larga oferta de imóveis disponíveis derruba seus preços, junto disso os preços dos papéis e títulos relacionados a estas hipotecas desmoronam e todos correm para vendê-los. A bola de papéis podres cresce e faz desmoronar as bolsas de valores e daí em diante já dá pra ver desenhado aquele fim do mundo. É regra básica do tal mercado que riscos maiores se relacionam com a possibilidade de ganhos maiores.
[3] São muitos os textos de Robert Kurz que abordam o capitalismo em seu estágio de cassino, improdutivo, fictício, voraz, ontológico e autodestrutivo. No site no: http://obeco.planetaclix.pt/ se pode acessar um bom punhado deles.
[4] As pesquisas e escritos de Rob Wallace explicam minuciosamente estes processos. O livro recém lançado no Brasil é emblemático. Ver: Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. (Tradução: Allan Rodrigo de Campos Silva Edição: Elefante & Igra Kniga)
[5] “O capitalismo deu metástase” foi uma frase proferida por Ailton Krenak em palestra feita na Universidade Federal de Goiás em setembro de 2019.