[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
se
se por acaso
a gente se cruzasse
ia ser um caso sério
você ia rir até amanhecer
eu ia ir até acontecer
de dia um improviso
de noite uma farra
a gente ia viver
com garra
eu ia tirar de ouvido
todos os sentidos
ia ser tão divertido
tocar um solo em dueto
ia ser um riso
ia ser um gozo
ia ser todo dia
a mesma folia
até deixar de ser poesia
e virar tédio
e nem o meu melhor vestido
era remédio
daí vá ficando por aí
eu vou ficando por aqui
evitando
desviando
sempre pensando
se por acaso
a gente se cruzasse…
navalhanaliga (1980)
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[2]
de novo
volto para meu amigo
trago um novo gosto
outra língua
terra estranha
volto aos poucos
para meu amigo
só que agora
já não trago
a alma comigo
gesto antigo
volto
de repente
para meu amigo
sou outra
outro é meu amigo
paixão xama paixão (1983)
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[3]
assim que vi você
logo vi que ia dar coisa
coisa feita pra durar
batendo duro no peito
até eu acabar virando
alguma coisa
parecida com você
parecia ter saído
de alguma lembrança antiga
que eu nunca tinha vivido
alguma coisa perdida
que eu nunca tinha tido
alguma voz amiga
esquecida no meu ouvido
agora não tem mais jeito
carrego você no peito
poema na camiseta
com a tua assinatura
já nem sei se é você mesmo
ou se sou eu que virei
parte da tua leitura
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[4]
espero
desde um telefonema
até um poema
espero
nem que seja
um problema
esse tema
que eu não toco
não porque tema
e sim
porque não entra
em nenhum esquema
espero
dentro da noite
algo que faça
com que eu gema
espero
e tudo é espera
nessa noite amena
menos teu nome
menos meu telefone
menos este verso
ou será um poema?
pelos pelos (1984)
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[5]
hoje
sou uma das coisas
raras do planeta
capaz de dar à vida
tudo que ela tem de luz
flor
que aberta
traria da água escura
o pólen, a fruta
dia
que tiraria
de dentro da noite
o lado oculto da lua
tão rara
e como eu
todas as sementes
que o vento arranca de tudo
e atira no nada
Vice-versos (1988)
Perfil
Alice Ruiz Scherone nasceu em Curitiba no dia 22 de janeiro de 1946. É poeta, hacaísta, letrista e tradutora. Foi casada com o escritor Paulo Leminski, com quem teve três filhos, entre os quais Estrela Ruiz Leminski, que despontou para a literatura e a música. Em 1989, recebeu o Prêmio Jabuti de Poesia por Vice-Versos. Publicou vários livros de tradução, mas a sua carreira centrou-se basicamente na poesia. Navalhanaliga (1980), Paixão xama paixão (1983), Pelos pelos (1984), Nuvem feliz (1986), Vice-versos (1988), Desorientais: haicais (1996), Poesia pra tocar no rádio (1999), Yuuka (2004), Dois em um (2008, poesia reunida), Conversa de passarinhos (2008, com Maria Valéria Rezende), Jardim de Haijin (2010), Proesias (2010) são os seus principais títulos. Na música, estabeleceu parcerias com Itamar Assumpção, Alzira Espíndola, Arnaldo Antunes, José Miguel Wisnik, Zeca Baleiro, Chico César e muitos outros compositores. Alzira Espíndola gravou Paralelas, disco com suas letras. A editora da UFPR publicou, na Série Paranaense, Alice Ruiz, espécie de biografia crítica que trata de sua obra.
Amo o trabalho da escritora e poeta Alice Ruiz. Tem um poema que amo ” Borada no espelho , não sei como explico essa cara que não pinto”