[Tradução de Rosângela Chaves, com a colaboração de Luís Araujo Pereira]
De Paris – O visitante que compareceu à exposição sobre Leonardo da Vinci (1452-1519) no Louvre, realizada pouco antes de o governo francês, devido à pandemia, proibir todas as exposições e fechar os museus, sabia que esse museu conserva a coleção mais completa das obras-primas do mestre italiano, que morreu na França com esse acervo. São, pois, outras revelações, tanto para a obra apresentada como para a obra de alguns dos seus discípulos, que deveriam permitir uma abordagem renovada de um admirável gesto artístico. E, depois, falava-se que uma obra recentemente atribuída a Leonardo, e colocada à venda na Christie’s em 2017, poderia constituir o “destaque” da exposição: o Salvator Mundi …
A exposição apresentou, trazida de São Petersburgo, a famosa Madonna Benois, às vezes tema de debates, não pela criança retratada, mas pelo sorriso literal da Madonna, que está longe de ser a expressão enigmática que faz a glória solitária e absoluta de Mona Lisa. Acima de tudo, esteve presente, vindo de Edimburgo, a Virgem do Fuso, totalmente restaurada e com um espírito que permite a atribuição “Leonardo da Vinci e oficina”. Tal como foi exibida, a pintura é notável, com uma beleza cuja origem seja talvez do ateliê.
Além disso, os responsáveis pela exposição atribuem a Leonardo o Retrato de um Músico, que está em Milão. Atribuição que foi discutida, mas os dois curadores da exposição garantem que será “cada vez mais aceita”. E a razão é a seguinte: “Sua própria incompletude é característica de Leonardo. É uma tela totalmente experimental, típica das pesquisas do mestre. Se Marco d’Oggiono ou Boltraffio tivessem-na pintado, seria muito mais acabada” (entrevista incluída no catálogo). O que pode ser criticado como critério, pois como avaliar a qualidade da incompletude de uma obra? O que é patente é que os discípulos não conseguiram restaurar o sfumato de Leonardo, ou seja, sua visão. O que não é apenas um problema técnico.
Desenhos admiráveis manifestam o espírito superagudo de Leonardo, como o Drapeado de São Morys ou o Crânio seccionado… Outro desenho permite imaginar o que poderia ter sido o afresco que representa a Batalha de Anghiari … Vários estudos de rostos completam essa lembrança de uma obra perdida … Muitos desenhos são de um Leonardo científico. Isso não impede que, como ocorre com os desenhos sobre o tema do dilúvio, eles possam ter uma dimensão visionária. E, o mais célebre, o Homem Vitruviano, é o próprio espírito da Renascença.
No que diz respeito aos discípulos, a obra mais espetacular apresentada foi uma cópia da Última Ceia, realizada por Marco d’Oggiono (Museu de Ecouen), em tamanho real. Sem o sfumato do Mestre, ela oferece, no entanto, a ideia da obra original, de seu tempo, com o esplendor de sua paleta. Ainda mais porque a paisagem, em segundo plano, está bem representada, ao passo que outras cópias simplesmente a suprimiram (como a de Saint Germain l’Auxerrois).
Admiramos ainda um desenho de Francesco Melzi, representando Leonardo de perfil e, sem dúvida, muito próximo da presença nobre e distinta que ele deve ter tido. Aliás, todos esses discípulos não são iguais em qualidade, e Melzi é, sem dúvida, ao lado de Bernardino Luini, muito próximo de Leonardo, sem incorrer em tentações decorativas. Talvez a exposição tivesse ganhado mais força se privilegiasse esse tipo de artista (também podemos pensar em De Predis) …
No final da exposição, duas ausências devem ser destacadas. A da Mona Lisa, mas por um bom motivo: ela não abandona mais o sistema de proteção que foi criado para torná-la, ao mesmo tempo, visível e inacessível. A outra é, infelizmente, a deserção de Salvator Mundi, que o público não conhece e que uma comparação dela com as grandes obras de Leonardo da Vinci poderia ter o efeito de ou devolver a sua autoria ao Mestre, admitindo a atribuição recente, ou a de ser cruelmente rejeitada, como obra de um discípulo ou mesmo de um copista.
Podemos, no entanto, ter uma ideia. Realmente, se olharmos para o lado direito da tela, notamos que o Salvator está segurando uma bola de vidro.
Isso é bastante estranho, porque, na tradição, cuja origem é bizantina, o Salvator segura um globo crucífero. Esse globo também é conhecido como orbe ou globus cruciger. Não se trata de um globo terrestre, mas de uma esfera encimada por uma cruz, sendo ela a abóbada do universo, na medida em que está sob o signo da cruz, símbolo de dominação espiritual e temporal. O problema é que o autor da tela parece ignorar esse detalhe elementar (a cruz!), o qual podemos ver muito bem em Dürer.
Observamos que Albrecht Dürer, em seu Salvator Mundi, acima, que se encontra em Nova York, embora a obra esteja inacabada, não esqueceu a cruz! Além disso, ele representou corretamente o globo de vidro (ou cristal), que não é transparente e cuja massa requer um tratamento distinto da vestimenta. Não é o caso do Salvator Mundi atribuído a Leonardo, em que aparece uma completa igualdade de tratamento, como um copista pode fazer, mas não um pintor experiente como Leonardo.
É significativo que Ticiano, ainda em 1570, conhecesse essa lição.
Trata-se, com efeito, de um globo crucífero. O artista reproduz tanto o efeito da luz no globo quanto o tratamento diferente da vestimenta.
Além do mais, há exemplares do círculo leonardiano deste Salvator Mundi, como o do Museu de Nancy, na Lorena.
Não podemos saber aqui o que é obra de Leonardo, com exceção do fato de que, pelo menos, a cruz está presente, com seu círculo. Só que não se trata mais de um globo transparente, mas de uma representação simbólica … A imagem, o símbolo estão em evolução.
O certo é que, algumas décadas depois, segundo o pintor (e eminente historiador) Vasari, o Salvator Mundi (coleção particular) salva apenas o nosso planeta. O globo crucífero desapareceu. Doravante, estamos no mundo de Copérnico e Vesalius. E a antiga imagem da abóbada de um universo fechado dominado pela cruz não pode mais continuar a ser representada.
Não é certo que o Salvator Mundi de Leonardo fosse dessa fase. Apesar de, como ocorre com a cópia de Nancy (às vezes atribuída a seu pupilo Gianpietrino), a abóbada do universo não seja mais do que um globo material …
Mas uma coisa é certa: o Salvator Mundi foi vendido, em 2017, por um bilionário russo a um amador de arte – sem dúvida, não um amante de arte – que alguns acreditam ser o “rei” da Arábia Saudita, um belicista no Iêmen (com armas americanas e francesas usadas contra populações civis, enquanto esses dois países continuam a ensinar lições de direitos humanos para todo o mundo ). Essa cópia mal-ajambrada foi vendida por 450 milhões de dólares.
Diante disso, podemos compreender melhor a ausência dessa obra na exposição do Louvre. Caso estivesse na exposição, a desatribuição de sua autoria seria certa. E seria um golpe para a especulação financeira, que toma de assalto a arte como um refúgio seguro. Graças sejam rendidas a Leonardo – o único –, aquele a quem nenhum copista se igualou. Ele nos permite afirmar, com toda a certeza, que o mundo da arte não é o do lucro.
O mundo da arte é aquele do sonho humano compartilhado, tendo como símbolo um globo de fraternidade.
Leia outro texto de Gérard Emmanuel da Silva sobre a polêmica tela Salvator Mundi, atribuída em 2017 a Da Vinci em http://ermiracultura.com.br/2018/04/13/um-falso-da-vinci-no-louvre-de-abu-dhabi/.