De Paris – Encontrado em 2005, restaurado e apresentado em 2011, durante uma exposição na National Gallery, em Londres, um Salvator Mundi, atribuído a Leonardo da Vinci, tornou-se o quadro mais caro do mundo, vendido pela “módica” quantia de 450,3 milhões de euros. O feliz proprietário é Mohammed ben Salmane, príncipe herdeiro da Arábia Saudita, cujo interesse pela arte parece algo secundário, ocupado que está em promover a guerra que financia no Yêmen.
Em sua edição de 16 de novembro de 2017, Le Figaro interroga: “Distraída como uma nuvem, não é que a casa Christie’s por pouco não foi derrotada pela sua rival Sotheby’s, a única capaz de concorrer com ela? Na noite do dia 15 de novembro, a Christie’s totalizou 785,9 milhões de dólares (664,7 milhões de euros) por 49 lotes arrematados, num total de 58, soma essa obtida em grande parte graças à adjudicação recorde de 450,3 milhões de dólares (380,8 milhões de euros) para Salvator Mundi, de Leonardo da Vinci”. O que está em jogo é, pois, uma questão de ordem especulativa.
No plano político, Macron fez uma visita a Abu Dhabi para a inauguração do “Louvre” local, que vai expor o Salvador Mundi. A rádio Europe 1, pró-Macron, emitiu o seguinte comentário, no dia 16 de dezembro: “É um holofote excepcional para esse novo museu, que o homem forte dos Emirados, o xeique Mohammed ben Zayed Al-Nahyane, qualificou de ‘monumento cultural mundial’, à ocasião de sua inauguração em 8 de novembro, na presença do presidente francês Emmanuel Macron.” Era “preciso” que esse quadro fosse um Leonardo da Vinci, tanto para a casa Christie’s como para os milionários dirigentes da Península Arábica, tendo Macron como intermediário do capital.
O Salvador Mundi afigura-se, acima de tudo, como o redentor simbólico – senão o protetor – de um capitalismo mundializado e gangrenado por uma bolha especulativa letal. Porque, mesmo com a melhor boa vontade do mundo, não é possível acreditar que essa obra desajeitada possa ser assinada pelo gênio do Renascimento. A mão direita, por exemplo, é muito malfeita, comparada àquela da tela retratando são João Batista e, além do mais, é desprovida do sfumato exclusivo de Da Vinci. O vestuário, então, é de uma reconstituição primária. A expressão do rosto e o olhar estão próximos de um certo grau de ininteligência, incompatível com um Salvator Mundi! Nenhuma representação masculina do artista é tão mal-ajambrada quanto esta. Além disso, o fundo neutro e o cabelo são muito inferiores em comparação ao que se vê em Retrato de um músico, do artista florentino.
Poder-se-ia, pois, deduzir que se trata de uma obra realizada por um discípulo direto de Da Vinci. Mas essa dedução não faria justiça a Bernardino Luini, Boltraffio ou Francesco Melzi, muito superiores, nem que seja só tecnicamente. Existe um Salvator Mundi de outro discípulo, Marco d’Oggiono, que permite uma comparação. Nesse quadro, é notável que a mão esquerda esteja completamente representada, segurando o globo. Ao passo que o autor do Salvator Mundi pretensamente atribuído a Da Vinci, consciente de seus limites, não se arrisca a representar a mão completa e, menos ainda, não sabe reconstituir o polegar.
O mais lamentável é ver o “perito” – que deu essa falsa atribuição de autoria – fazer a história da arte recuar a um estágio anterior aos famosos Studi di critica d’arte sulla pittura italiana, que o grande Morelli publicou nos anos 1890-1893. Nesses estudos, Morelli demonstrou como o estilo “leonardiano”, estabelecido sem nenhuma precisão antes dele, permitiu atribuir a Da Vinci, em muitas coleções, a autoria de obras cuja qualidade é muito medíocre. De modo exemplar, Morelli teve sucesso ao estabelecer um corpus diferenciando os discípulos e seguidores de Da Vinci em relação ao Mestre em pessoa , com a adoção de critérios precisos e justificados para cada um deles.
Responsável por atribuir o Salvator Mundi a Da Vinci, Martin Kemp caiu no ridículo ao pretender que essa pintura, grosso modo, “leonardesca”, seja de autoria do Mestre. Mas a lógica especulativa age assim mesmo, afastada que se encontra da realidade. Ela tem necessidade da figura do perito para justificar a fraude que está na origem do lucro ilícito ou desigual. É o que acontece também em economia, e um prêmio Nobel na matéria usou do mesmo expediente para dar seriedade científica a práticas especulativas “podres”, até mesmo ilegais, no seu princípio. E a arte, transformada em mercado de arte, precisa também por razões geopolíticas e econômicas, da figura do expert para vender um “ativo podre”, uma tela vagamente “leonardesca”, por um extraordinário investimento: uma obra de Leonardo da Vinci.
A investigação deve, pois, continuar. Parece que o pintor florentino pintou um Salvator Mundi, do qual só restam algumas cópias, como a obra que vai agora reinar no Louvre de Abu Dhabi. Onde se encontra o original? Sem dúvida, ele se perdeu. Já não é mais possível, a esse Salvador do Mundo, libertar o capitalismo e a arte como negócio. Pelo menos, nós podemos nos consolar com o sorriso da Mona Lisa.
(Tradução de Luís Araujo Pereira, com colaboração de Rosângela Chaves)