Guardo uma mágoa pessoal da Rede Globo de Televisão: em 1985, quando tinha 8 anos, exibiu-se a série baseada em Grande Serão: Veredas, de Guimarães Rosa, sob direção de Walter Avancini. Tony Ramos interpretava Riobaldo, Tarcísio Meira fazia Joca Ramiro e Bruna Lombardi era Reinaldo – que só Riobaldo podia chamá-lo Diadorim.
Ah, não, gentchy! Bruna Lombardi era/é a típica mulher bonita demais para um personagem concebido como ambíguo, que deveria causar incômodo. Mas tudo bem, ela embelezava as telas do horário das 22h e deixava os lares brasileiros dormirem em paz, já que permitia adivinhar. Todo mundo sabia, menos o Tony Ramos, que Diadorim era mulher.
Cortar os cabelos não resolveu nada na composição da personagem. Assim eu nunca pude compartilhar da dor e da surpresa, ao final da primeira incursão pelas veredas de Rosa, 14 anos depois, ao ler que o jagunço Reinaldo, por quem Riobaldo mantinha um amor angustiadamente homoafetivo, na verdade, era Maria Deodorina travestida. Talvez este tenha sido o maior spoiler do Brasil nos anos 80. Imperdoável.
No livro e na tela, Diadorim tinha os cabelos curtos, cortados como “os de um homem”. O objetivo era poder acompanhar o pai, Joca Ramiro, em sua luta sertaneja, sem correr o risco de ser violentada. Os cabelos curtos, nesse caso, fazem parte de uma composição com finalidades de disfarce e de sobrevivência, como já aconteceu tantas vezes na literatura quanto na vida. Já falei disso aqui, em outra crônica.
Acrescento, agora, apenas o relato pessoal de Nádia Ghulam, que, no Afeganistão, vestiu-se de homem durante 10 anos para sobreviver ao Taleban. Voltando ao meu desabafo novelístico: adiantou alguma coisa cortarem o cabelo da Bruna Lombardi? Ficou mais masculina, como era a intenção? No máximo, ela confirmou a tendência dos estilosos cabelos curtos femininos que, há algum tempo, são incentivados pelas revistas de moda para “mulheres ousadas, donas de si, à frente de seu tempo”.
Nossa cultura, judaico-cristã e eurocentrada, no entanto, tem o costume antigo e perverso de marcar os corpos para constituir hierarquias e justificar explorações violentas. Essas marcas são fabricadas, algumas tornam-se indeléveis. Uma mulher branca pode ter curtos os cabelos e os homens descolados podem deixar os seus crescerem, mas uma pessoa preta não pode, até hoje, depois do processo de racialização que justificou a escravização nos tempos coloniais (também chamamos isso de era moderna), passar por esta terra sem sofrer algum tipo de violência. Uma parlenda brasileira, resgatada por Câmara Cascudo, o mostra bem:
Cabeça pelada!
Urubu camarada!
Quem te pelou?
Foi a besta melada,
comendo coalhada
no meio da estrada!
Em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, escrito em 1951, Cascudo lembra que durante muito tempo praticou-se a “tosquia penal”, como no caso de pessoas escravizadas. Para marcação das mulheres, a título de exemplo, encontramos em Deuteronômio (21, 10-14) a seguinte instrução: “Quando saíres para guerrear contra teus inimigos, e Iahweh teu Deus os entregar em tuas mãos, e tiveres feito prisioneiros, caso vejas entre eles uma mulher formosa e te enamores dela, tu a poderás tomar como mulher e trazê-la para tua casa. Ela então raspará a cabeça”.
E houve também a descalvação para punição de mulheres de má-vida, como lemos em Isaías (3, 18-24): “Naquele dia, o Senhor as despojará do adorno dos anéis dos seus tornozelos […], dos anéis e dos pendentes do nariz, dos vestidos de festa, das capas, dos xales e das bolsas, dos espelhinhos, das camisas, dos turbantes e das mantilhas. […] Em lugar do cabelo, a calvície; em lugar de veste fina, cobertura de saco; em lugar da beleza ficará a marca do ferro em brasa”.
Esse costume atravessou os séculos. Quando Joana d’Arc, a donzela guerreira, sentiu-se convocada para a Guerra dos Cem Anos, cortou os cabelos e apresentou-se ao não coroado Carlos VII. Apesar de convencer a todos do chamado divino para tal missão, não escapou aos olhares desconfiados daqueles que associavam os cabelos curtos de uma mulher a um passado suspeito.
E podemos ver essa violência “simbólica” em filmes como Silenciadas (Akelarre, 2020, dirigido por Pablo Aguero) em que jovens mulheres do século XVII (na história real, elas eram francesas) são tomadas como bruxas e, independentemente do que pudessem dizer em defesa de si, tiveram os cabelos tosados. Um último exemplo de punição, pensando no que ainda pode acontecer na realidade brasileira presente, o encontraremos no filme O Animal Cordial (2017, direção de Gabriela Amaral Almeida), em que a personagem de Irandhir Santos, um cozinheiro homossexual, dono de longos e bem cuidados cabelos, sofre, entre tantas outras agressões, a espoliação de seu orgulho.
Toda essa história de punição e marcação de corpos explica um pouco, só um pouco, as frases que ouço sempre: “mas você fica parecendo homem com esse cabelo”; “eu preferia seu cabelo como estava antes”; “o cabelo comprido te deixa mais feminina”; “queria ter a sua coragem!”; “o seu namorado gostou?”. Então chegamos ao ponto “Damares” da questão: assim como meninas vestem rosa e meninos vestem azul, mulheres devem usar os cabelos compridos e os homens podem os manter curtos.
Na segunda década do século XXI, essas questões fazem remeter a uma reflexão sobre performance de gênero. Não foi gratuito que George Sand, pseudônimo utilizado pela escritora francesa Amandine Aurore Lucile Dupin (1804-1876), cortou seus cabelos e os enviou ao poeta Alfred Musset como uma mensagem de renúncia de sua dedicação sexual ao amante.
Também Frida Kahlo pintou-se de cabelos curtos sem abrir mão de ornamentos considerados tipicamente femininos na obra Autorretrato de Pelona (1940) para provocar esse tipo de embaralhamento do sistema sexo/gênero que nos rege. E gostaria de mencionar ainda o trabalho da fotógrafa norte-americana Nan Goldin (Jimmy Paulette and Tabboo in the Bathroom, 1991) que nos obriga a olhar num espelho em que duas figuras já não podem ser designadas, não só pelos cabelos curtos, como masculinas ou femininas. Mire e veja!
Já tive cabelos longos, médios, curtos, muito curtos e hoje eles estão raspados. Se eu tivesse que responder a um porquê, diria como a deusa Minerva, disfarçada de Nestor, no canto IV da Odisseia: em tempos de genocídio, em que uma má intencionada gestão da pandemia de covid-19 no Brasil mata mais de 3 mil pessoas por dia, que podemos fazer além de cortar os cabelos e banhar as faces em lágrimas? E que fique claro: não se trata de conformismo, mas de manifestação de dor, de indignação, de desejo de liberdade.
Quanta sensibilidade em um raspar os cabelos!
Seus textos me tocam e me inspiram, sempre, mesmo sabendo que, provavelmente, não escreverei nada. De qualquer forma sigo guardando as inspirações, um dia, quem sabe?
Parabéns e gratidão pelo texto!
Perfeito!!!
Maravilhosa! Excelente reflexão!
Linda crônica, traz-nos a reflexão de quanto a mulher na história é sub julgada!