Quando notei que ele ficava a maior parte do tempo, com as suas unhas longas e sujas, remexendo naquelas feridas em sua perna que não cicatrizavam nunca, eu o adverti: As crianças não devem adotar hábitos imundos, nem contrariar as ordens do Papai. Sim, sim, ele respondeu, coitadinho, decepcionado e aflito. Depois disso, senti que a minha repreensão causara algum resultado, pois, nos dias seguintes, não o vi nenhuma vez coçando as suas feridas. Quando tudo parecia indicar que ele finalmente se corrigira, eis que o surpreendo em nova desobediência. Nessa ocasião, ai, que nojo!, além de remexer no machucado, ele comia as casquinhas que iam se soltando e, o pior, o que me nauseou, tentara repetidas vezes, sem nenhum sucesso, lamber as chagas expostas em sua perna. Não contive um grito áspero que o assustou, colocando-o abrigado detrás dos móveis e fingindo que praticara a mais inocente das ações, tudo teatrinho. Mamãe não gosta de meninos teimosos, disse-lhe suavemente ao mesmo tempo em que cortava as suas unhinhas, uma por uma, do polegar ao mindinho. Intimidado e triste, ele sorria encabulado, vendo os seus dedos diminuírem de tamanho, as pontas das unhas voando longe no crec-crec da tesourinha. Sei que ele adorava aquelas garrinhas: com elas, coçava demoradamente as suas pernas, removia a terra no quintal, furava as frutas, os sacos de mantimentos e, quando descobria um inseto, partia-o ao meio, como se elas fossem lâminas afiadas. Às vezes, malvadinho, brincava de arranhar o rosto da Mamãe – plist, imitava os gatos vadios do quintal. De hoje em diante, meu amor, seja um menino bonzinho, falei-lhe enquanto terminava o serviço, as suas unhas nunca mais farão mal algum, e sua feridinha vai sarar logo, logo. Tá, tá, ele respondeu, balançando a cabecinha, sem muito ritmo. Apesar de meio esquisito, o meu filho era uma criaturinha adorável, eu o amava como todos os pais amam os seus filhos, sejam quais forem os sacrifícios que eles às vezes nos impõem, os problemas que nos causam, as aflições sem dias definidos. Houve apenas um momento em que senti remorso, talvez o meu descuido tivesse prejudicado o nosso amado filhinho: por que não havia cortado antes suas unhas? Bom, agora era tarde para arrependimentos, o que estava feito era irremediável – e, depois de minha última iniciativa, ele devia de uma vez por todas se corrigir, eu nunca mais passaria vergonha diante das visitas, nem sentiria a obrigação de escondê-lo quando a campainha tocava. A educação dos filhos é tão difícil e longa, é preciso amá-los tanto, tanto, para que eles se tornem indivíduos sadios e responsáveis, mas, oh!, tão grande foi a minha dor no dia em que vi o meu lindo filhinho debruçado sobre a sua perna lambendo aquelas horríveis feridas, finalmente o diabinho conseguira, era por isso que o seu machucado não sarava nunca, nunca. Dessa vez, eu não sabia o que fazer, eu me sentia inexperiente e inútil, as decisões são tão penosas, ele era o meu primeiro filho, dizem que o primeiro filho sempre estraga os pais, é um grande sentimento que se experimenta e se extravasa, porém a custo de árduas tarefas, e Mamãe sabe como deve nos doer o fundo do coração. Tentei intimidá-lo: se você fizer isso mais uma vez, Papai não te leva na festa da Vovó, a Vovó tem presentes pra você, um carrinho desse tamanho, disse-lhe entre outras enrolações. Como eu o surpreendi outras vezes repetindo aquela nojeira, o meu coração partiu-se no instante em que coloquei uma focinheira em sua cabecinha: eu não pensei em outra solução, isto é, até ali, eu não sabia mais o que fazer, como agir, esta me parecia a melhor solução para conter seus impulsos autodestrutivos, ele me causava as apreensões mais absurdas. Dava remorso vê-lo debatendo-se dentro daquela armação, as suas mãozinhas tentaram arrancá-la diversas vezes, porém a correia estava apertada e firme, ele choramingava, os seus olhinhos espremiam-se de desconsolo. Ai, meu lindo filhinho! Eu me senti o verme mais abjeto vendo aquela cena, mas era para o seu próprio bem, eu não tinha muita experiência com crianças, só amor, amor desmedido, e queria resolver, sem a interferência de ninguém, os problemas de educação do meu lindo filhinho, o Papai e a Mamãe sabem, melhor do que ninguém, como conduzi-lo a uma vida de plena felicidade.. Em diversas oportunidades, as visitas constrangiam-me: cada vez que recebia as amigas, tinha de escondê-lo, e se perguntassem por ele, eu mentia: Foi brincar na casa da Vovó, o dia todo. Aí, graças a Deus, elas se esqueciam do menino, não faziam mais perguntas imbecis e passavam a falar sobre outras coisas, ainda bem que não há só crianças como assunto. Depois que as visitas iam embora, eu soltava o meu filhinho. Um dia, pela primeira vez, ele saiu do seu esconderijo, para o meu maior espanto, correndo de quatro como se fosse um animalzinho – e tive a impressão, quando olhou para mim, como os animais normalmente olham, que ele rosnava. Rosnava? O meu filho era mesmo uma graça, senhores, vocês precisavam vê-lo nas suas inúmeras brincadeiras, nas suas simulações de bichos fantásticos. Em certos momentos, ele me divertia a ponto de eu perder o fôlego, o Papai ria, a Mamãe gargalhava, o que era muito bom para a nossa família, já que passávamos a maior parte do tempo sozinhos. Nós ríamos, ríamos, quer dizer eu ria, e ele, engraçadinho, rosnava: grrrrrrrr. Afinal, ele havia se habituado com a focinheira, até para comer ele achava ruim tirá-la, o danadinho do meu filho parecia às vezes um Lancelot, há! há! há!, só faltavam capa e espada pra gente brincar de cavaleiros do Rei Arthur. Ah, como eu o amava, perdidamente. Mas a vida nos guarda inúmeras decepções, os desmancha-prazeres podem aparecer a qualquer momento, a vida não é uma tarde azul com flores e borboletas preguiçosas, o porqueirinha do meu filho tinha de desobedecer ao Papai e, um dia, sem querer, eu o surpreendi com a ponta dos seus dedinhos remexendo as suas feridas – era por isso que a sua perna estava ficando cada vez pior –, as lesões aumentando de tamanho como se quisessem contaminar todo o seu corpo, ele urrou de ódio quando percebeu que eu o havia surpreendido, acuado e indefeso, a sua perninha lembrava o corpo aberto de um boi no açougue. Você não gosta mesmo do Papai nem da Mamãe, você é um menino mau, veja só o que o Papai tem de fazer para o bem de seu anjinho, disse-lhe enquanto amarrava as suas mãozinhas. Ele me fixou através de sua armação, sem se dignar a exprimir nenhum sentimento. Seu olhar tinha a profundeza de uma noite que cai num abismo. Os meus dedos ficaram gelados. Eu achei naquele momento, com o temor de ouvir blasfêmias, que o meu filho estava começando a se tornar outro, sem demonstrar piedade pelos que o amavam, o Papai e a Mamãe. Daí em diante, foi um custo contê-lo em seus arremessos e novas brincadeiras: ele fingia que era o bandido do filme de detetives da tevê, algemado pelas costas e amordaçado. Brinquemos de outra coisa, eu falei, um dia, depois de ficar escondendo-me um tempão atrás da cortina da sala, esperando-o passar pelo corredor à minha procura, inutilmente, pois ele preferira continuar no quintal imitando um robozinho. As crianças são difíceis de ser controladas em suas paixões infantis, nenhum livro de psicologia me ensinaria mais do que eu estava aprendendo com a educação do meu lindo e inteligente filhinho. A nossa vida seguia intensamente, o sol nascia e a lua brilhava, cada dia que passava eu descobria como era forte o seu poder de invenção e agora, com as mãozinhas presas, ele procurava obter mais recursos com as pernas e a boca, que se prestavam a onomatopeias, ruídos de animais que não identificava. Eu o observava com todo o carinho e cuidado possíveis. Ele dava a impressão de ter se habituado àquela vida de restrições e, apesar de dispor apenas das pernas, era inquieto, sempre chutando objetos e pulando sem parar, igual a um pônei. Plá! plá! plá!, ele fazia quando corria pelo corredor. Plá!, eu o ouvia mais adiante. Como a sua enorme ferida estava se curando, eu falei: Mamãe e Papai deixam você livre de novo pra você brincar do que quiser, mas tem de prometer: Serei um menino obediente, não darei mais desgostos ao Papai e à Mamãe. Ouvindo a promessa, ele caiu no chão e brincou de cachorrinho. Era uma comédia vê-lo assim, sempre disposto e fanfarrão, o meu filho não tinha equivalentes neste mundo louco. Por todos os seus progressos nesse período, nem pude acreditar no que vi algum tempo depois, logo agora, meu Deus, que ele estava próximo de se ver livre daquelas correias, eu até estava pensando em organizar uma festinha com mãe-benta, guaraná e brigadeiro. Utilizando os dedos dos pés, ele esfregava com força o seu machucado, como se isso lhe causasse um grande prazer e nenhuma dor, a carne ficando exposta e feia, o sangue escorrendo abundante perna abaixo, à procura de um ralo que, na realidade, poderia ser a boca do inferno nas rachaduras da casa. Eu senti vertigens, gritei com raiva e, perdendo a paciência, desferi-lhe um tapa no rosto, ainda mais agora que tudo ia tão bem, ele estava quase curado, meu Deus, quem entende as crianças? E como elas conseguem enviar sinais tão mal disfarçados: eu sei muito bem o que são esses furos inflamados na sua perna esquerda, eu sei que estou diante de uma anomalia, como isso pode acontecer? Já não sabia mais o que fazer para conter o seu impulso de autodestruição. Eu não acreditava que, naquela idade, o meu filho pudesse sofrer de alguma mania terrível, eu que dera tudo pra ele, brinquedos, passeios em montanha-russa, doces e sorvetes, atendera enfim a todos os seus caprichos e desejos, todos, todos. Pela primeira vez até então, pensei que o único recurso era amarrar uma atadura em sua perna pra que aquela horrenda ferida se cicatrizasse depressa e ele pudesse, ao lado do Papai e da Mamãe, retornar por fim à sua vida normal, de criança sadia e sorridente, até hoje não sei como ele pode se deixar ferir tão misteriosamente. Ai, como a distração tem sentidos turvos, pensei sem saber por quê. Quando terminei de fazer a atadura, encarei-o. O olhar que o meu filhinho devolveu-me era o pior de todos. Ao invés de compaixão pelo seu estado, eu senti medo, um medo aflitivo, que eu tentava bloquear ali mesmo: meu filho (eu não queria acreditar nisso) tinha se tornado irreconhecível, o meu corpo tremeu ao ver em seus olhinhos inchados e vermelhos uma descarga invisível de maldade e ódio, aquela maldade que provém de um obscuro sentido. Abracei-o em seguida com ternura para retirar aquela impressão absurda – e o seu corpinho estava frio e indiferente ao meu contato, o seu coraçãozinho nem parecia que pulsava. Meu filho – disse-lhe –, fale alguma coisa para o Papai, Mamãe adora você, damos tudo que você quiser. Estando assim tão perto dele, notei que seus pelos tinham aumentado, que horror!, tornando-se negros e grossos como os pelos de um porco: um arrepio veio como uma eletricidade balançar a minha fé, desviei o rosto com todo assombro para não ver que, no lugar de suas unhinhas, nascia aquilo que qualquer veterinário chamaria de casco, casco animalesco, as pontas dos dedos adaptando-se à nova forma, meu Deus do céu, nunca mais me esquecerei desse dia, nem que tenha diante de mim todas as belas imagens de santos. A partir dessa mudança, ao contrário das semanas precedentes, ele se tornou uma criança esquiva e inerte, parecia um bicho morto em sua cama. Mancando a perninha, ele não se animava a participar das diversas brincadeiras que tentei inventar para ele, de saci-pererê a aleijadinho de porta de mercado. Meu filho, você sente dodói, Mamãe traz um bombom pra você, daqueles de que você gosta, Mamãe deixa você brincar de cavalinho na casa da Vovó. Para o meu desespero, ele me olhava com crueldade nesses momentos. Eu sentia que o meu filho me desprezava, que não era mais o mesmo menino, travesso e inteligente, que, por algum mistério ou maldição, transformava-se num anjinho perverso, foi o pior sentimento que experimentei em toda minha vida, onde estava o erro irreparável que cometemos? Ah, como sofrem os pais! – Mamãe e Papai suspiravam. Eu mal conseguia controlar a minha ansiedade, esperando o instante de libertá-lo daquele sofrimento, que a sua ferida se cicatrizasse logo, que ele voltasse ao seu meigo comportamento, que a minha vida não fosse um quintal de urtigas. À noite, tinha pesadelos, o mesmo sonho de terror, repetidamente: o meu filho era enviado do demônio, só Deus sabe o castigo que está reservado àqueles que concebem tão desprezíveis criaturas, que Nosso Senhor Jesus Cristo proteja-me. Quando acordava, eu corria ao seu quarto para examiná-lo: que alívio eu sentia vendo-o dormindo calmamente em sua caminha, suas perninhas amarradas em volta do estrado para não magoar, no sono, a ferida que estava quase cicatrizada. Nem lembrava, assim tão inocente, o anjinho perverso que, durante o dia, matava os gatos que invadiam o quintal. Não sabia por que, mas eu vivia de obsessões, nem coragem tinha mais pra chegar perto do meu filhinho e dizer-lhe: Papai e Mamãe adoram você, você é o nosso maior tesouro, amanhã nós vamos ao circo – e abraçá-lo e beijá-lo e guardá-lo lindo e sadio pra sempre no cofre de meus seios, na ânsia de minha paz, nos afagos de minha perplexidade, na fumaça do meu cigarro. Além disso, os negócios e o trabalho afastavam-me dele, dura vida, que me fode. Eu também tinha medo, cada vez mais, de aproximar-me e descobrir outra transformação bizarra em seu corpinho. Se eu não podia atendê-lo com a atenção que merecia, ele me evitava ostensivamente – parecia que preparava uma vingança terrível, da qual jamais me esqueceria, que me magoaria para o resto de minha vida. Eu pressentia que uma tormenta estava próxima a desabar sobre as nossas vidas – e receava as imaginações malignas, sem fim, uma atrás da outra, como um sinal do mal que rondava a nossa casa, ave-maria-cheia-de-graça, ninguém merece o terror para o qual a luz não acende tão cedo. Nos meus pesadelos, a sua ferida tinha virado uma doença inominável, que os médicos repugnam, tendo invadido e tomado todo o seu corpo, a doença que é sopro que vem da profundeza. Como eu não fazia a menor ideia do que poderia vir em seguida, o meu maior temor – como me doía pensar essa loucura! – era o de que, livre e curado, ele fosse à gaveta do armário e, se apoderando de uma faca, passasse a cortar escandalosamente, com um olhar pernicioso e sem pressa, todo o seu corpinho, ao mesmo tempo em que ia se transformando na besta do Apocalipse, essa desgraça prometida há tantos séculos, dizendo as mais horríveis heresias para os seus pobres pais, que o conceberam e que o amam tanto, tanto.
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