[Coautor: Weiny Cesar Freitas Pinto[1]]
Diversas pseudociências vêm invadindo os campos terapêuticos e confundindo quem procura por terapia, o que dificulta a distinção do processo psicoterapêutico realizado por um profissional pautado na ciência da Psicologia. Com o charlatanismo dos consteladores familiares, practitioners de barra de access, hipnoterapeutas, coaches de toda espécie, entre tantas outras práticas que frequentemente empregam termos científicos como argumento de autoridade, é urgente debater a produção de conhecimento científico no campo clínico da Psicologia.
A análise do comportamento (AC) é uma das várias abordagens existentes no campo da ciência psicológica, cujo objeto de estudo é a previsão e o controle do comportamento, sendo um campo de saber que realiza a integração de produções filosóficas, reflexivas, interpretativas, empíricas e aplicadas (Donadone, 2015). Nesse sentido, Tourinho (2011) apresenta a analogia dos três vértices de um triângulo epistemológico, no qual o primeiro abarca as “análises reflexivas e filosóficas”; o segundo, as produções básicas de “análise experimental do comportamento” – por exemplo, as pesquisas realizadas em laboratórios com seleção de amostra por método probabilístico, além do controle e da manipulação das variáveis; o terceiro, as “análises aplicadas do comportamento”, que são as responsáveis por aplicar os conhecimentos produzidos no segundo vértice, estruturando intervenções de relevância social em vários contextos.
Voltando nosso olhar ao terceiro vértice deste triângulo, delimitemo-nos aqui ao contexto clínico. Donadone (2015) ressalta que, no processo terapêutico, é atribuição do psicólogo coletar informações, identificar o problema, levantar hipóteses, planejar e programar a intervenção e avaliar os resultados. Tais comportamentos apresentam semelhanças diretas com o comportamento de um cientista, que também identifica um problema cuja solução é importante, levanta hipóteses com o intuito de encontrar respostas, tendo como base um referencial, planeja e programa intervenções e avalia os resultados (Luna, 2019).
Ao questionar a possibilidade de um prestador de serviços ser também um pesquisador, Luna (2017, p. 23), apesar de diferenciá-los, afirma que “[…] formalmente falando, não há nada que impeça que um profissional pesquise uma realidade e, ao mesmo tempo, preste serviços aos envolvidos nela. […] Este seria o profissional ideal”, visto que a imersão mais intensiva do pesquisador na situação a ser pesquisada eleva a relevância dos conhecimentos produzidos, além de aumentar o compromisso do pesquisador com a modificação da realidade, tanto por meio de intervenções diretas quanto pela explicitação das decorrências sociais da produção do conhecimento (Luna, 2017).
Sobre a noção de “conhecimento” para a AC, Skinner (2006) salienta que os indivíduos desejam, procuram e possuem o conhecimento, o qual é possuído como repertório comportamental, e que o principal problema do conhecimento científico não é “o que é conhecido pelos cientistas?”, e sim, “o que significa conhecer?”. O fundador do behaviorismo radical comenta ainda o fato de o conhecimento ser subjetivo, ressaltando que o é, apenas no sentido trivial de ser o comportamento de uma pessoa. E o que determina e mantém esse comportamento? O contexto ambiental, o qual inclui tanto a pessoa em si quanto o meio externo e também as demais pessoas com quem se tem interação.
Assim, o cientista produz um conhecimento que está além da sua subjetividade quando é capaz de notar o mundo que está ao seu redor e identificar fatos ou leis – descrições do mundo, contingências de reforço predominantes – que possibilitem “[…] que uma pessoa aja de forma mais bem-sucedida que a que seria capaz de aprender na curta duração de uma vida ou mesmo por exposição direta a muitos tipos de contingências” (Skinner, 2006, p. 124).
Esses apontamentos e o nosso questionamento inicial levam-nos a refletir sobre os caminhos da terapia analítico-comportamental e da pesquisa clínica em psicologia. Skinner, Solomon e Lidsley propuseram o termo “terapia comportamental” no ano de 1954, objetivando a descrição da análise do comportamento aplicada a um problema clínico, o que os levou a estudar, de maneira mais direta, as interações entre indivíduos e ambiente (Donadone, 2015). No Brasil, entre os avanços e modificações de nomenclatura, compreendeu-se que o melhor termo para a aplicação da AC no ambiente clínico seria “terapia analítico-comportamental”, por garantir uma identificação imediata da fundamentação teórica na qual a terapia é baseada (Meyer, 2009).
Ao compreendermos que o objeto de estudo da AC não é simplesmente o comportamento em si, mas a interação deste comportamento com o ambiente, vemos que o clínico precisa estar atento às relações envolvidas na causa do comportamento, já que é no ambiente que a ocasião (antecedente) é constituída para o comportamento (resposta) da pessoa, que, por sua vez, produz modificações neste ambiente que determinarão a probabilidade de o comportamento do indivíduo se repetir (Donadone, 2015). Os primeiros relatos de intervenções clínicas comportamentais se deram por meio de trabalhos realizados em ambientes fechados, com o intuito de que o terapeuta/pesquisador tivesse mais acesso e maior controle das variáveis ambientais produtoras dos comportamentos dos indivíduos que passaram pela intervenção. Após críticas em relação à artificialidade dessas intervenções, os analistas do comportamento passaram a trabalhar na aplicação de procedimentos em ambientes naturais, com o objetivo de alteração do ambiente e modificação dos sujeitos (Zamignani; Banaco; Wielenska, 2007).
Com efeito, sabemos que a prática clínica não possibilita amplo controle experimental, não sendo possível determinar, por exemplo, que, ao manipular certas variáveis, obtenha-se efeitos específicos (Donadone, 2015):
[…] como o terapeuta não pode antever todas as circunstâncias com as quais o paciente vai se defrontar, deve também estabelecer um repertório de autocontrole, através do qual o paciente seja capaz de se ajustar às circunstâncias à medida que surjam. (Skinner, 2003, p. 414).
Dessa forma, durante o processo terapêutico, desde as variáveis iniciais da interação do clínico com o paciente, forma-se uma rede de relações que raramente se repete em cada caso, dificultando o acúmulo de estudos científicos necessários para a generalização dos resultados e dos procedimentos, o que, todavia, não impede a pesquisa científica no campo da clínica, pois, mesmo sendo uma tarefa difícil, sabe-se que a sistematização do que um terapeuta faz e o estabelecimento metodológico de quais práticas produzem ou não resultados satisfatórios – além de serem elementos de altíssima importância e da rotina da prática clínica – são tarefas perfeitamente possíveis de serem realizadas e aprimoradas.
Portanto, não só é possível a produção de conhecimento científico a partir do contexto da clínica psicológica, mas, mais que nunca, é urgente voltarmos nossa atenção para esse tema, com a finalidade de compreender e reduzir a proliferação das pseudociências no grande campo da psicoterapia. Assim, baseados nas melhores práticas de investigação e evidência poderemos garantir acompanhamento sério e digno à saúde mental daqueles que procuram pelos trabalhos do profissional da Psicologia.
Referências
DONADONE, Júlio Cesar. O trabalho do analista do comportamento em psicoterapia. In: BANDINI, Carmen Silvia Motta, et al. (Org.). Compreendendo a prática do analista do comportamento. São Paulo: EDUFSCar, 2015, pp. 97-22.
LUNA, Sergio Vaz. Planejamento de pesquisa: uma introdução. 2. ed. São Paulo: EDUC, 2017.
LUNA, Sergio Vaz. O terapeuta é um cientista?Revista Perspectivas em Análise do Comportamento, v. 10, n.1, 2019, p. 7-15.
MEYER, Sonia Beatriz. Análise de ‘solicitação de informação’ e ‘recomendação’ em banco de dados de terapias comportamentais. Tese de livre-docência. São Paulo: USP, 2009.
SKINNER, Burrhus Frederic. Ciência e comportamento humano. 11. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
SKINNER, Burrhus Frederic. Sobre o behaviorismo. São Paulo: Cultrix, 2006.
TOURINHO, Emmanuel Zagury. Notas sobre o behaviorismo de ontem e hoje. Psicologia, Reflexão e Crítica, v. 24, n.1, Porto Alegre, 2011, p. 186-194.
ZAMIGNANI, Denis Roberto; BANACO, Roberto Alves; WIELESNKA, Regina Christina. O mundo como setting clínico do analista do comportamento. In: ZAMIGNANI, Denis Roberto; KOVAC, Roberta; VERMES, Joana Singer (Org.). A clínica de portas abertas: experiência e fundamentos de acompanhamento terapêutico e de prática clínica em ambiente extra consultório. São Paulo: Paradigma/ESETec, 2007, pp. 21-29.
[1] Professor do Curso de Filosofia e da Pós-graduação em Psicologia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br
O artigo é o quarto da terceira edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos da série:
- Sobre a subjetividade contemporânea: uma perspectiva do romance e da filosofia, de Jonathan Postaue Marques e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/08/sobre-a-subjetividade-contemporanea-uma-perspectiva-do-romance-e-da-filosofia/.
- Por uma introdução crítica e bem informada à obra de Freud, de Caio Padovan e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/15/por-uma-introducao-critica-e-bem-informada-a-obra-de-freud/.
- O tempo do desejo, de Vítor H. R. Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/22/o-tempo-do-desejo/.