[Coautor: Vítor Hugo dos Reis Costa[1]]
Na obra A arte do romance (1991), Milan Kundera se move em um cenário de crise, que surge no início da modernidade, e que Heidegger denominou amplamente de “esquecimento do ser”. No pensamento de Galileu e Descartes, o mundo é reduzido a uma exploração técnica e matemática, não há espaço para a realidade concreta da vida; em sentido contrário, Kundera afirma que Miguel de Cervantes explora o ser esquecido. No mundo tecnicista, composto por fórmulas conceituais que procuram a razão de ser dos fenômenos, existe a resistência de Cervantes que contraria os tripulantes do barco da verdade totalitária, argumentando que o mundo da vida é ressaltado através de múltiplas verdades. A única certeza é a sabedoria da incerteza.
Quando o ser é esquecido, a vida perde importância, afinal, o pensamento pode nos afastar do que há de mais concreto, distanciando-nos da própria existência. A incerteza do romance ressalta a inexistência de um Juiz Supremo, apresentando a relatividade humana. Justamente por isso, o romance não tem espaço no mundo das certezas totalitárias. Diferente de um conceito ou fórmula que abarca a verdade em um sentido universal, o romance relembra a incerteza que permeia a vida, haja vista que não há um sentido absoluto, pois a existência concreta seria marcada pela falta de sentido. Diante dessa relatividade, a reflexão sobre o ser é salvaguardada pelo romance – que valoriza o mundo da vida e os diversos sentidos que podem ser atribuídos a ela, uma vez que a ausência de sentido é anunciada por meio da falta de um critério absoluto.
Kundera afirma que os primeiros romances são desprovidos de uma temporalidade definida em termos históricos e geográficos. No entanto, posteriormente, a falta de sentido é substituída pela compreensão histórica, marcada por instituições sociais dotadas de sentido (o Estado, a justiça, a polícia, etc.). O espaço infinito da alma, por um lado, é entendido como uma instância coberta pela futilidade depreendida de sua relatividade essencial, enquanto a história, por outro lado, é impessoal e segue seu curso impiedosamente por meio de um sistema comumente admitido. Através da história, a vida humana é reduzida à “sua função social; a história de um povo, […] o mundo da vida de que falava Husserl, obscurece-se fatalmente e onde o ser cai no esquecimento” (Kundera, 2016, p. 24-25).
Os romancistas expressam uma sabedoria suprapessoal, fruto da incerteza e da falta de sentido absoluto, não de convicções morais pessoais. Já o romance, por sua vez, surge como eco do riso de Deus sobre os que, como Descartes, pensam – ou pensam que pensam. Kundera ressalta que, quando os humanos pensam – em termos de causa e efeito, por meio de conceitos –, enganam-se sobre seu próprio eu, pois o homem não é o que pensa ser. Além disso, através do pensamento, a verdade do próprio mundo não pode ser apreendida. A seriedade inerente ao pensamento seria o seu traço mais cômico: quem pensa, crê no que pensa, e, de forma sempre pouco risível ao olhar exterior, torna-se excessivamente cioso sobre coisas que cintilam insignificância. François Rabelais, escritor francês, é apresentado por Kundera com grande mérito, pois inventou o neologismo agélaste, que significa aquele que não ri, que não tem senso do humor. Os agélastes afirmam uma verdade indubitável e acreditam ser o que pensam ser. Contudo, Kundera afirma que, para se tornar indivíduo, é necessário perder a certeza da verdade e o consentimento dos outros.
Portanto, justamente na falta de sentido o indivíduo surge. Sem assentir com a busca por propósitos unânimes, seu raiar é contrário à ideologia ou ao sentido das massas. Tudo se passa como se o homem fosse fruto do humor de Deus. O riso de Deus ressalta a tragédia cômica da humanidade em que todos padecem de uma falta de sentido constituinte, mas aderem ao sentido que o outro oferece para não cair na sabedoria da incerteza. Esse saber é indesejável, pois apresenta uma verdade relativa – algo totalmente contrário ao pensamento totalitário. Os romances propõem uma resposta à pergunta: “o que é a existência humana e em que reside sua poesia?” (Kundera, 2016, p. 161).
Mais perto de nós que de Kundera, Machado de Assis afirma ter se inspirado no escritor Laurence Sterne, a fim de compor a obra Memórias póstumas de Brás Cubas (1881). Em Sterne, segundo a interpretação de Kundera, a poesia é fruto da interrupção da ação; ela surge no momento em que a busca de sentido/causa/efeito cessa e o pensamento pode desfrutar de uma liberdade inigualável. Contrária a essa concepção, está a busca pelo sentido marcado pelo racionalismo do século XVIII, no qual a frase de Leibniz ganha destaque: “nada daquilo que é, é sem razão”. Kundera, então, afirma que a busca constante pela causalidade dos atos somente acelera o caminho até a morte.
Segundo ele, um outro romancista francês, Gustave Flaubert, prestou à humanidade o precioso serviço de mostrar que a tolice humana progride assim como a ciência, sendo o tolo moderno aquele que não reflete sobre as ideias que recebe. Ora, essas ideias são justamente fontes de sentido que conduzem o sujeito em sua vida. Não pensar sobre as ideias recebidas é viver de modo inautêntico, como uma folha que é carregada pelo vento. Sendo assim, o que é o sujeito (subjetividade)? O que o constitui? Ele é uma total falta de sentido? Os agélastes se enganam ao considerar a si mesmos fontes de sentido? O sentido é realmente importante? Como conciliar o sentido e a falta de sentido e a verdade e o mundo relativo da vida?
Portanto, nota-se que a discussão sobre a subjetividade contemporânea exige certa reflexão sobre o sujeito e a verdade. O filósofo Alain Badiou faz algumas considerações importantes sobre esses conceitos; ele aponta a necessidade de reformular essas categorias filosóficas, no intuito de salvaguardar a filosofia que está ameaçada. Inicialmente, (1) a filosofia deve partir de um evento, de algo inominável que é apreendido pelo pensamento e não apresenta relação com estruturas já estabelecidas; posteriormente, (2) a filosofia deve ser singular como um poema, mas universal, pois se dirige a todo pensamento; e então (3) a filosofia deve ter uma linguagem flexível que possa interpretar um poema e um axioma, na qual possa existir espaço para o equívoco poético e para a ciência como pensamento.
O sujeito não é fonte de sentido (nem sempre há um sujeito), ele é constituído por uma verdade e tem começo, meio e fim. O evento é algo que não pode ser denominado com exatidão, pois determinar seu início é incorrer em uma “aposta”. O sujeito, sendo finito, é alguém que procura abarcar esse evento e se manter fiel ao ocorrido. Desse esforço, surge uma verdade (genérica) e, quando forçada ainda mais, cai no inominável, no indizível. Sendo assim, o ser de uma verdade só pode ser expresso, em última instância, por meios poéticos. Ora, mesmo assim, ainda há espaço para a racionalidade, pois o resgate de um evento é um trabalho que envolve amor, como no exemplo de uma folha amassada que nunca voltará ao estado original, mas, através de uma tentativa amorosa de resgate, ela pode ser desamassada até que suas hachuras possam ser parcialmente amenizadas.
Sendo assim, o sentido e a falta de sentido constituem elementos que compõem a existência. Será sensato abandonar um em detrimento do outro? Parece ser necessário pensar o romance, sua poesia e a sua filosofia para desenvolver mais profundamente essas reflexões.
Referências
BADIOU, Alain. Para uma nova teoria do sujeito. Trad.: Emerson Xavier da Silva e Gilda Sodré. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
KUNDERA, Milan. A arte do romance. Trad.: Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
[1] Doutor (2021), mestre (2012) e graduado (2008) em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: costavhr@gmail.com
O artigo é o primeiro da terceira edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios.