[Coautor: Vítor Hugo dos Reis Costa[1]]
“Si vis pacem, para bellum” – “Se queres paz, prepare-te para guerra”. Parece-me apropriado começar o texto com esse provérbio, uma vez que não é rara a analogia da vida com um campo de batalha, o viver com uma contínua luta e, como não existem guerras sem violência, tema central do texto, comecemos por essa perspectiva da vida. Se não existe uma natureza humana, o homem se fez um eterno combatente, para quem a glória é o poder e os meios de obtê-la é a violência. Nas palavras de Jean-Paul Sartre (1905-1980): “não há natureza humana, visto que não há Deus para conceber. O homem nem é, não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência”. E é nesse campo da análise, da violência como fenômeno social, que se apresentam as tensões e ambiguidades das relações humanas, na sua dimensão política, familiar, amorosa, psicológica, etc. Nessa mesma direção, segundo Milan Kundera (1929-), a principal característica da sociedade moderna é sua ambiguidade, tão bem capturada pela arte do romance.
Obviamente, a violência não é um fenômeno exclusivo da contemporaneidade. No entanto, as ferramentas que as produzem vão se aperfeiçoando ao longo da história. E é disso que se trata a nossa análise: a violência. Sua temporalidade é a da sociedade contemporânea, o seu meio, ou as ferramentas pelas quais ela se manifesta, e que analisaremos são a tecnologia e suas linguagens; sobretudo o meio da internet, mais especificamente as redes sociais, um mediador das relações humanas e um meio onde também se manifesta o fenômeno da violência.
Uma das grandes pistas para a compreensão da violência humana pode ser encontrada no pensamento de Sigmund Freud (1856-1939). Segundo Freud, em Além do princípio do prazer (1920), somos seres para a morte, a morte seria uma espécie de completude do homem ou individualização do sujeito. Nascemos e nos desenvolvemos em direção à morte, e nossa pulsão de vida nada mais é que a busca pela morte ideal, a morte natural. Essa perspectiva biológica de uma vida efêmera traz consigo um problema moral, como observava, antes de Freud, o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900). Esse problema foi abordado por Kundera em A insustentável leveza do ser (1984). Na primeira parte do romance, capítulos 1 e 2, Kundera interpreta o mito nietzschiano do eterno retorno, por meio do qual o filósofo afirma que tudo que acontecer na nossa vida se repetirá eternamente. Podemos extrair dessa mudança de paradigma, da linearidade para a ciclicidade da vida, um aspecto moral e ontológico.
O aspecto moral parte de um pressuposto que o sujeito é afetado por essa ideia da eterna repetição, ressignificando sua relação com o mundo. Já o aspecto ontológico estabelece uma dicotomia do ser, que tem em si a leveza e o peso como atributos ambíguos do sujeito. Como consequência desse novo paradigma, constatamos que, sobre toda ação humana – que se repetiria eternamente –, recai uma maior responsabilidade, atribuindo um peso à nossa existência, em contrapartida à efemeridade da vida. Da mesma forma, essa perspectiva traz um enorme peso aos nossos atos; o contrário também é verdadeiro, a leveza da vida nos possibilita naturalizar a violência e a barbárie. Uma guerra pode ser apenas um fato histórico ou um bloco de dor e sofrimento que se repetirá eternamente. E é com as lentes dessa ambiguidade, do peso e da leveza, que vamos perscrutar nossa ferramenta de violência, as redes sociais na internet.
O que está em questão não é como chegamos aqui. É fato que grande parte das relações humanas no século XXI é intermediada pela internet, um relacionamento virtual, à distância, intermediado. Sites e aplicativos são os campos sociais do conflito, nos quais as pessoas fazem amizades, namoram, compartilham fotos, experiências pessoais e opiniões, em um imenso ambiente de convivência. E, como nas extremidades desses fluxos de dados, estão seres humanos, a violência aí também se faz presente, como acúmulo de capital simbólico. Não se trata da natureza, muito menos das razões da violência, mas de suas manifestações por essa nova ferramenta. Hannah Arendt (1906-1975), em sua obra Sobre a violência, relata sua experiência da passagem da violência física das metralhadoras e fuzis para o “tique-taque” psicológico da expectativa do fim do mundo (pós-guerra, período conhecido como Guerra Fria).
Esta, agora, parece mais próxima da ideia de violência simbólica de Pierre Bourdieu (1928-2002): uma forma de imposição de valores culturais. Segundo o sociólogo, “não basta notar que as relações de comunicações são, de modo inseparável, sempre, relações de poder que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes” (1989, p. 11). Sob uma superfície rasa de debates acerca de beleza corporal, política, sexualidade, futebol, religião, o que se esconde, sobretudo, é uma imposição cultural, uma legitimação de um grupo dominante pelo poder, que se manifesta através da violência. É possível identificar três conceitos de Bourdieu em nossa abordagem: o campo social, no caso as redes sociais; o capital acumulado, a legitimidade dos grupos dominantes, na política, estética, cultura, etnia, ideologia, etc.; a violência simbólica propriamente dita, praticada pela linguagem própria das redes sociais, textos, imagens e curtidas.
Como as relações interpessoais não são físicas, a violência se manifesta nesse meio pelos aspectos psicológicos. E, se a leveza das nossas ações constitui um problema moral para Kundera, tudo parece ficar ainda mais leve no ambiente virtual: a fugacidade de uma postagem ou de uma curtida nos torna cada vez mais condescendentes com a violência. Ela não só não se repetirá eternamente, como rapidamente será substituída por outra postagem na nossa timeline. Na maioria das vezes, a violência se encerra, para o autor, num clique de botão, não tem lágrimas, gritos de dor, expressão corporal. Tudo se passa como uma insustentável leveza! Nas palavras de Kundera (1984, p. 10): “As nuvens alaranjadas do crepúsculo douram todas as coisas com o encanto da nostalgia, inclusive a guilhotina”.
Por fim, retomando o conceito de pulsão de morte de Freud, e tendo em vista que a ambiguidade é uma característica de nosso tempo, quero propor uma interpretação ambígua da violência, um aspecto subjetivo e biológico e outro político e social. No primeiro, a violência aparece como expressão de força, vigor, potência, que, como tudo no homem, é serva da morte e está a serviço da biologia para manter o organismo vivo no percurso de sua morte natural. Por outro lado, o segundo aspecto aponta para quando essa força vital transcende sua subjetividade, ganha um aspecto agressivo e cruel no meio social, no qual as relações não são de sobrevivência, mas de poder, numa sociedade hierarquizada e desigual.
Como a violência, tal qual foi descrita, é sempre fruto de uma ação humana, não seria o silêncio e a inércia diante da violência também uma forma de violência? Para terminar como começamos, que fale o poeta, “se queres paz, prepara-te para guerra. Se não queres nada, descanse em paz”.
Referências
KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. Rio de Janeiro: Record, 1984.
FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. [1920].
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. [1969].
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. [1946].
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989.
[1] Doutor (2021), mestre (2012) e graduado (2008) em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: costavhr@gmail.com
O artigo é o sétimo da terceira edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos da série:
- Sobre a subjetividade contemporânea: uma perspectiva do romance e da filosofia, de Jonathan Postaue Marques e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/08/sobre-a-subjetividade-contemporanea-uma-perspectiva-do-romance-e-da-filosofia/.
- Por uma introdução crítica e bem informada à obra de Freud, de Caio Padovan e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/15/por-uma-introducao-critica-e-bem-informada-a-obra-de-freud/.
- O tempo do desejo, de Vítor H. R. Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/22/o-tempo-do-desejo/.
- A clínica analítico-comportamental é espaço para produção de conhecimento científico?, de Vanessa Borri e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/29/a-clinica-analitico-comportamental-e-espaco-para-producao-de-conhecimento-cientifico/.
- A arte, mãe do conhecer, de Davi Molina e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/02/05/a-arte-mae-do-conhecer/.
- As “humanidades” como fonte de resistência aos regimes autoritários, de Paula Mariana Rech, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/02/12/as-humanidades-como-fonte-de-resistencia-aos-regimes-autoritarios/.
Parabéns pelo sensato ensaio meu amigo. A subjetividade que ronda nossa jornada neste paralelo, tomando forma e cor.