Junto com os irmãos Grimm, o escritor dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875) é certamente uma das maiores referências da literatura mundial infantojuvenil. Recolhendo nas lendas populares a matéria-prima para elaborar seus contos, Andersen criou um universo próprio, repleto de personagens que por gerações encantaram, e ainda encantam, os leitores, como o patinho feio que se transformou em um belo cisne ou o soldadinho de chumbo apaixonado pela bailarina de papel.
Percebendo que no mundo moderno, tomado pela racionalidade, o “milagroso” ficava cada vez mais relegado ao quarto das crianças, o autor dinamarquês resolveu dedicar a elas o seu talento criativo. E foi às crianças que ele narrou, com delicadeza e sensibilidade, seus mitos profundos e significativos que, apesar da aparente inocência de histórias infantis, revelavam uma grande compreensão da natureza humana.
Mas Andersen também escreveu, digamos, para “gente grande”, embora os seus romances nunca tenham alcançado o mesmo patamar de sucesso da sua obra infantojuvenil. Um conto do autor, no entanto, voltado para o público adulto, logo se tornou um clássico e até hoje é presença certa nas coletâneas dedicadas ao gênero. Chama-se A sombra e desenvolve um tema que foi recorrente na literatura fantástica dos séculos 18 e 19: o que poderia ocorrer a uma pessoa que perdesse a própria sombra?
Na história, um homem sábio, que vive recluso num país estrangeiro, um belo dia percebe que a sua própria sombra fugira. Esta ganha autonomia e passa a levar uma vida de prazeres, acumulando fortuna, colecionando amores e frequentando a alta sociedade – exatamente tudo aquilo de que o seu dono se privara. Seu êxito é tamanho que, quando finalmente reencontra o homem de quem se separou, ela vai exigir de seu antigo proprietário que ele é que passe a servir-lhe de sombra.
A perda da sombra, a ausência de reflexo no espelho, a exemplo das populares histórias de vampiro, sempre apareceram, na tradição literária, como metáforas para a danação da alma. Estes eram os sinais de quem havia feito um pacto com o demônio e, portanto, abdicado da possibilidade de um dia obter a graça divina.
O conto de Hans Christian Andersen retoma estes temas, de conteúdo religioso e moral, e lhes confere uma extraordinária complexidade psicológica – e aí reside todo o poder de sedução do seu texto. Num comentário sobre o conto, o escritor Italo Calvino observa que, na narrativa do autor dinamarquês, a imagem da sombra perdida surge como a essência fugidia da pessoa, o “duplo” que cada um de nós carrega. A “sombra” de Andersen seria, assim, a emanação do desejo reprimido, um desejo que, como a sombra da história que ganha vida e independência, pode subjugar por completo aquele que o alimenta.
Que belas sugestões de Literatura recebemos aqui de Rosângela e Luís. Os clássicos sempre atuais, trazendo uma luz nesses tempos tão sombrios, Brasil ladeira abaixo nos investimentos culturais e educacionais.