Assimetrias ordinárias é um livro de batalhas internas e externas de uma poeta urbana em meio ao caos de existir. É a alforria de Alda Alexandre diante do conformismo e da passividade. A partir de um “grito” silencioso, “numa breve oração, me prometi pequenas coisas”, toda a poesia começa a ser forjada no passar das horas, dos dias e dos entrelaçamentos com a memória passada. Cada verso nos faz refletir sobre as incertezas de viver na contemporaneidade, “sou apenas inexata / como se pode prever em mapas astrológicos / e se constatar em radiografias”. O livro de Alda desafia o leitor a sair de si e se projetar na realidade poética da autora, deixando, assim, o “moto-contínuo das interrupções” para refletir sobre as miudezas que nos fazem humanos.
Trata-se de um projeto poético despretensioso, na extensão, mas cheio de sutilezas, no conteúdo. Ao todo, a obra conta com 80 páginas, das quais 47 delas estampa um poema, sem título. Cada poema pode ser lido isoladamente, ou como parte de um relato maior, que se equilibra entre a prosa poética e o poema em prosa. Isso condiz com a maneira que Alda se apresenta como escritora: “mezzo a mezzo… mezzo poeta mezzo contista / pretensa roteirista”. Um único poema, entre os demais, é visualmente marcado pela espacialidade, nos moldes do concretismo. Esta é apenas uma entre as muitas marcas da poesia modernista brasileira na obra de Alda Alexandre.
O restante das páginas forma uma narrativa visual complementar. Algumas delas carregam cores sólidas, vibrantes, que conferem uma atmosfera pop ao conjunto. Outras são cobertas por fotos de autoria da própria poeta. Nelas, observamos marcas de gestualidade da autora, “arquitetando rotas penosas”, experimentações com desenhos, ou mesmo a reunião de objetos que fazem parte do seu universo pessoal, com “claras miudezas”. Os poemas verbais da autora replicam suas fotografias carregadas de pequenos objetos: “fiz esses dias um pequeno altar pra PJ Harvey / com miniaturas e penduricalhos / e um cristal amarelado envolta da pequena foto”.
A presença de todas essas imagens de objetos nos remete à noção de pós-produção, segundo Nicolas Bourriaud, em Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. Ou seja, a poeta, bem como quase todo artista atual, deve lidar com a produção de sentidos diante da massa caótica de objetos, nomes, referências etc. que constituem o nosso cotidiano. A colisão com o excesso de objetos e informações também é observada no seguinte poema:
vejo uma sacola pisada no chão, Luiz XIV, multimarcas femininas
ando a esmo
até que dou acordo de mim na porta de um shopping
e subo a escada pro inferno
na seção de loja de departamentos vejo uma peça com a inscrição
LESS, que quer dizer TOO MUCH
como quem aspirasse ao minimalismo
sinto quase um mal-estar
Podemos observar, no poema acima, reflexos do abalo na noção de visualidade dominante até o século XIX, que pressupunha o olho como um centro de projeção estático, devendo permanecer imóvel. Esse abalo, aliado a uma nova consciência da linguagem, é evidenciado na obra de Baudelaire. O ponto de vista do flâneur não se estabelece a partir de uma perspectiva estática e distanciada, parecendo mais com uma câmera em deslocamento. Como vemos, no poema de Baudelaire, o olhar do flâneur segue a lógica do movimento do corpo, como, por exemplo, no poema “O Sol”:
Ao longo dos subúrbios, onde nos pardieiros
Persianas acobertam beijos sorrateiros,
Quando o impiedoso sol arroja seus punhais
Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais,
Exercerei a sós a minha estranha esgrima,
Buscando em cada canto os acasos da rima,
Tropeçando em palavras como nas calçadas,
Topando imagens desde há muito já sonhadas.
A reunião de pequenos objetos, nas fotografias de Alda, não parece um simples acaso. Isso é uma clara mensagem da autora sobre o seu processo criativo. Como muitos poetas modernos e contemporâneos, ela nos mostra que a poesia se faz “ao rés do chão”, com as coisas mais simples, pois a poesia não está no que se diz, mas na maneira de dizer. Vemos, abaixo, como objetos comuns ganham vigor através da palavra poética de Alda:
os prendedores de roupa
esquecidos na tela da janela
por um momento
me lembram pardais
me ignoram
mas inertes assim como eu
contemplam a vida lá fora
Observamos que não há uma separação rigorosa entre as páginas com poemas e as páginas com imagens – lembrando que estas também podem ser “lidas” como poemas visuais. Em alguns momentos, as imagens invadem o espaço da página confinando o poema verbal numa estreita faixa lateral. Isso contribui com a ideia de assimetria, declarada no título do livro. Todas essas imagens, nas linhas de um scrapbook, apontam para o caráter autobiográfico da obra. A data que supostamente marca o início da escrita remete à forma dos diários: “em 31 de dezembro de 2019”. E, ainda, o poema de Beta(m)xreis, escolhido como epígrafe da obra, reforça essa visão: “…e são meus / os passos / a fazer o caminho…”.
O título do livro traz, de saída, se não uma contradição, possivelmente, um pequeno incômodo. Parece haver um “desencaixe” entre os termos “assimetrias” e “ordinárias”. As duas palavras do título aparecem, na capa, atravessadas por uma linha, sugerindo, visualmente, um corte ou desencaixe. Consideramos também, que, no campo das artes, no qual a autora parece transitar, as composições assimétricas mostram-se, com frequência, mais interessantes do que as simétricas. Talvez por isso, a partir de um eu poético predominantemente individual, a autora torna-se “esperançosa como a menina da live do Instagram” que “pinta os dois olhos assimetricamente”. De fato, podemos concluir que não devemos esperar muito de comum na leitura da obra de Alda Alexandre. O pouco de ordinário que encontramos no livro grassa tanto pela forma confessa de um diário, como pela crítica do universo feminino que se impõe e/ou é imposto: “sangrava 40 dias até ser curetada num ambulatório frio”; “me disseram que eu era uma árvore seca / mas dou estranhos frutos”.
Escrever poesia em tempos difíceis não é tarefa banal, mas, talvez, seja o que nos salva. São nesses momentos, diz a poeta, que devemos “escrever até dar com a cara no muro”. A maioria dos poemas de Assimetrias Ordinárias foi, declaradamente, escrita durante os dois anos de isolamento social, trazidos pela pandemia da Covid-19. O livro é repleto de passagens que remetem ao isolamento social e aos novos hábitos sanitários instituídos naquele momento como, por exemplo, “eu mal tenho ânimo de acender a luminária / mas alcanço o frasco de álcool em gel e derramo nas mãos”. Afora isso, nesse período, já vivíamos num país mergulhado nas trevas de um recente governo de extrema-direita. Esses dois fatores, associados, justificam os seguintes versos, em clara referência a Rimbaud: “e quem há de nos pagar / por essa temporada no inferno / graças aos idiotas de todas as esferas”. Nesse contexto, afirma a poeta, “existimos” e “essa é a vingança”. Contrariando os versos de Bertolt Brecht, em “Aos que virão depois de nós”, que proclamam: “Aquele que ri / ainda não recebeu a terrível notícia / que está para chegar”, Alda Alexandre nos convoca, ironicamente, a “gargalhar”, “apesar das coisas todas” para que “nossa dor nunca vire impotência” e “pra que o silêncio não nos infeccione”.
Nos versos acima, a voz enunciativa pressupõe um “nós”, passando da subjetividade individual para uma subjetividade coletiva. Dessa maneira, problematizando a subjetividade relativa a um “eu” individual e autobiográfico. Em diversos momentos, a poeta promove uma identificação entre o eu poético e o leitor, causando o afastamento de uma leitura extremamente pessoal da autora. É o que ocorre nos seguintes versos: “nada temos a ver com Próspero / somos Sycorax, concebendo Calibã / e semearemos pelos milênios nossa maldição”. Do mesmo modo, vemos a marca da coletividade expressa no poema abaixo, no qual “o desejo nos crucifica”:
o desejo é nosso ponto de equilíbrio, às vezes
de fuga. nos marca pela presença, pela falta, pelo
excesso, pavimenta nossas vias. obsessão ou
anodinia, frenesi, seca brava, combustão, enxurrada,
todas as máquinas… nos crucifica
Podemos afirmar, no entanto, que, mesmo quando não há a presença de um “nós”, a poesia de Alda Alexandre consegue atingir algo de universal. É o que ocorre quando os sentimentos mais profundos se revelam poeticamente e se alinham em concordância com a coletividade. Por essa razão, o amor, a solidão e o desejo, entre outros temas, são atemporais na poesia. Assim, podemos nos identificar com os seguintes versos: “meu desejo cancelado brilha”, e, também, “meu desejo / que já passeou por suas curvas / e agora segue outras rotas”.
Em adição, consideramos que o reconhecimento entre o “eu” da poeta e o do leitor se dá pela via de uma inserção mútua no mundo. O aqui agora/real em conjunto com a história recente manifesta-se através de vários intertextos que podem (ou não) provocar a identificação do leitor. A linguagem da poeta nos revela muito de seu arcabouço literário. Por exemplo, nos versos, “das rondas aleatórias” e “samplear frases de romance… é só mesmo para flanar”, percebemos marcas da modernidade literária. À semelhança do flâneur, conforme a concepção de Baudelaire mencionada anteriormente, a autora busca sua fonte de inspiração literalmente flanando nas ruas, e, sobretudo, na forma em que constrói sua escrita. Dessa maneira, o sujeito vivido se confunde com a própria escritura.
Um reconhecimento mais acessível ao leitor encontra-se, talvez, na banalidade da linguagem, por vezes usada pela poeta, e, também, pelo uso de gírias, como, por exemplo, nos versos: “não tive forças para abrir o vinho com o saca-rolhas mixuruquinha”, ou “sibilante e poser”. Aqui, lembramos das palavras de Oswald de Andrade, em seu Manifesto da Poesia Pau-Brasil, sobre a contribuição milionária de todos os erros” do falar cotidiano. Nesse sentido, também vemos a incorporação dos erros da escrita datilografada, de acordo com o poema “Máquina de escrever”, de Mário de Andrade. Nele, “A interjeição saiu com um ponto fora de lugar! / Minha comoção / Esqueceu de bater o retrocesso”. Do mesmo modo, na era da informática, Alda incorpora os erros a sua poesia:
desativei o corretor automático
mas ele ainda me oprime
não me deixou escrever
a palavra precarização
É frequente, na escrita da autora, o uso duma linguagem que se refere às mídias digitais, “… até dei match no spotify”. Tanto que a poeta chega a declarar sua conexão com esse universo: “compulsiva das telas / instalada no limbo / onde muitos nadas se inscrevem”. Somando-se a isso, notamos inúmeras referências ao universo da música pop nacional, “Erasmo canta Gente Aberta” e internacional, “se eu fosse ouvir Madonna agora / teria que ser aquela com Massive Atack, I want you, para entrar num / fluxo atemporal”.
Como percebemos nesses últimos versos, exemplificados acima, na poesia de Alda, há a presença do anacronismo como manifestação da poesia contemporânea, nas linhas do que Célia Pedrosa pontua sobre a poesia de Antonio Cicero, em Considerações anacrônicas: lirismo, subjetividade, resistência. Pedrosa diz que os poemas de Cicero são “provocantemente anacrônicos”, pois em sua produção há a inserção de movimentos midiáticos do pop-rock, o que reflete uma concepção diferenciada de contemporaneidade. Nesse sentido, nosso encontro com o intertexto musical da poeta nos levou a um interessante movimento de colisão entre o passado recente e o presente. Isso, a nosso ver, aumentando a atmosfera de circularidade que o texto confere no passar dos dias, das horas, as incursões na memória passada e na instantaneidade do presente.
No mais, à primeira vista, a poesia de Alda Alexandre causa uma falsa impressão de simplicidade, como se o embate com a palavra poética fosse coisa fácil de resolver. A falsa impressão de simplicidade emerge, talvez, da sensação de urgência impressa desde a primeira página do livro, “me mover pra onde fosse”, até as últimas, “a dor no pé / o cansaço / a hora / tudo / tudo agora contém traços de espera”. Para romper com essa falsa aparência, é preciso ler a poesia de Alda até que as sutilezas aflorem. Ler até que as relações intersubjetivas deflagrem novas interpretações a cada leitura. Ler até chegar a resultados que escapam a estas nossas breves considerações.