Quando se pensa nas mulheres da Divina Comédia, é natural que o primeiro nome que venha à mente seja o de Beatriz, a musa de Dante que é celebrada ao longo do poema e que o guia pelos céus do Paraíso, após o poeta ter percorrido os nove círculos do Inferno e escalado a montanha do Purgatório, em companhia de outro poeta, Virgílio. Mas se a personagem é inspirada na jovem, morta aos 24 anos, que Dante Alighieri (1265-1321) de fato conheceu e por quem alimentou um amor pudico e idealizado por toda a vida, é verdade que a divina Beatriz aparece no poema mais como uma abstração – uma alegoria da Fé ou da Teologia, uma representação da Filosofia ou ainda uma metáfora da Poesia, a depender do viés interpretativo. Talvez seja por esse caráter por demais diáfano de Beatriz que outra figura feminina que surge nessa aventura poética pelos três reinos além-mundo tenha tocado mais profundamente o coração de gerações de leitores no decorrer dos séculos: a desventurada Francesca da Rimini.
Como Beatriz, Francesca era também proveniente de uma família nobre que morreu jovem, aos 30 anos, ainda no auge da beleza. Mas se Beatriz, na obra-prima de Dante, reina no Paraíso como símbolo da salvação e da sabedoria, Francesca amarga no Inferno a culpa por ter cedido ao desejo. Enquanto uma espelha a luz da razão, a outra personifica a maldição da carne.
Somos apresentados à infeliz Francesca logo nos primeiros cantos do Inferno, mais precisamente no canto V, em que Dante, na descida pelos domínios do reino subterrâneo, passa pelo segundo círculo, onde estão aqueles que cometeram o pecado da luxúria. A pena para os culpados é serem arrastados incessantemente por um vento inclemente, provocado pelo ruflar das asas monumentais de Lúcifer, que se encontra no nono círculo, no centro da Terra – como eles se deixaram levar pelo turbilhão das suas paixões concuspicentes, agora têm como castigo serem punidos por essa ventania implacável até o Juízo Final. Na multidão de almas em meio à voragem, Virgílio aponta a Dante figuras célebres por sua volúpia, como Semíramis, Cleópatra, Helena de Troia, Tristão e Isolda. Entre eles, Dante distingue o casal formado por Paolo Malatesta e Francesca da Rímini, os cunhados adúlteros que foram assassinados pelo marido de Francesca e irmão de Paolo, Gianciotto Malatesta.
A história real registra que a bela Francesca, contemporânea de Dante, casou-se contra a sua vontade com Gianciotto, em um acordo político para selar a paz entre as famílias de ambos, que estavam em guerra em mais um dos conflitos constantes entre os clãs nobres da Itália. Gianciotto era um homem culto, mas de aparência repulsiva. O casamento foi celebrado por procuração, e o irmão de Gianciotto, o belo e jovem Paolo, foi quem representou o noivo. Na versão da tragédia do casal de amantes apresentada por Dante, é Francesca quem relata, a pedido do poeta, em um breve momento de pausa da ventania infernal, como ela e Paolo sucumbiram à paixão recíproca. Eles estavam lendo em conjunto a história do amor adúltero entre Lancelote e Guinevère, personagens da lenda do Rei Arthur, quando não resistiram à atração mútua e se beijaram, “e nunca mais foi a leitura adiante”. Nesse instante de perdição, foram flagrados por Gianciotto que, para salvar a “honra” ultrajada, os assassinou.
Ler romances pode ser perigoso, como mais tarde comprovariam as desventuras de Dom Quixote e Emma Bovary.
Como foram mortos no momento do “crime”, Paolo e Francesca não tiveram tempo de se arrepender do seu pecado – caso contrário, poderiam ter a chance de pelo menos ter suas almas conduzidas ao Purgatório, onde haveria uma possibilidade de redenção. Paola, no entanto, dá a entender que, apesar dos indíziveis sofrimentos infligidos pela justiça divina, ainda nutre o amor proibido por Paolo. “Não existe […] maior dor que recordar, no mal, a hora feliz”, confessa ela a Dante sobre o fugaz instante de prazer que desfrutara ao lado do amado. E por conservar a sua paixão é que a sua expiação é ainda mais severa: transformados em sombras, ela e o amante arderão eternamente de desejo um pelo outro, sem jamais poderem se tocar.
É importante lembrar que o assassino do casal também não fica impune. No diálogo com Dante, Francesca informa que Gianciotto era esperado na Caína, o que sugere que ele ainda estava vivo no momento do encontro entre ela e o poeta no Inferno. A Caína, derivada do nome do personagem bíblico Caim, é o lugar no nono círculo do Inferno reservado aos traidores de parentes, que cometeram crime contra aqueles de seu próprio sangue. Fica subentendido que o marido de Francesca está condenado a purgar sua culpa neste local por ter matado o irmão, cometendo fratricídio, e não por ter tirado a vida da esposa.
Somos responsáveis pelo amor que sentimos ou os apaixonados são vítimas de suas próprias paixões? O amor é essa potência devastadora que pode conduzir à morte? Há uma ambivalência em torno do amor em Dante. A moral cristã que fundamenta a lógica da justiça divina em seu poema é rigorosa e implacável e, por ela, o amor a ser cultivado é o amor idealizado, representado pela figura de Beatriz. Já o amor que cede aos apetites sexuais, encarnado por Francesca, é um amor “culpado” e deve ser punido.
Dante não desafia a lei divina, mas ao final do canto V, quando Francesca encerra o comovente e doloroso relato dos seus infortúnios, o poeta é tomado pela compaixão, a ponto de desfalecer.
Enquanto aquela sombra o triste amor
lembrava, a outra gemia de desconforto;
e quase à morte eu fui, de tanta dor.
E caí, como cai um corpo morto.
A razão de Dante está com Beatriz. Mas o seu coração – tão humano – pelo menos nesse instante está, como o nosso, com Francesca.