[Coautor: Jonathan Postaue Marques[1]]
Ser apresentado à filosofia bergsoniana é estar defronte a uma aventura de pensamentos. Henri Bergson (1859-1941), filósofo francês do século passado, tornou-se um marco para a filosofia moderna e contemporânea ao romper com o dualismo cartesiano – tese filosófica que entende mente e corpo (res cogitans e res extensa) como substâncias distintas, cuja confluência mostra-se inquestionável. Bergson supera o dualismo, mas isso não quer dizer que ele seja monista. Ele é notoriamente dualista e propõe uma resposta totalmente original e positiva para a relação entre corpo e espírito na obra Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito (2010), ao indicar caminhos que demonstram a ligação entre ambos pelo advento da memória. A questão sobre a conexão entre material e espiritual é antiga na história da filosofia, porém ela sempre ocorreu sobrepondo a mente sobre a matéria ou vice-versa. Bergson inova ao propor um vínculo entre corpo e espírito sem superpor nenhum deles.
Bergson afirma que a relação entre espírito e corpo é intermediada pela memória e sustenta sua tese por meio de um repertório teórico marcante, que exprime uma linguagem poética e simbólica que nunca se perde nas entrelinhas. A dualidade da filosofia bergsoniana, por exemplo, pode ser constantemente expressa pelos conceitos de “imagem”, “corpo”, “espírito” e “memória”. A imagem é definida como um meio-termo entre a materialidade e a representação e, nesse sentido, a realidade em que estamos imersos não seria feita apenas deste ou daquele termo. Imagem no sentido do senso comum, aquilo que está entre o extremo da ideia e da coisa, isto é, imagem como aquilo que existe no objeto em si e, além disso, a imagem do objeto tal como o percebemos. Segundo essa concepção, o mundo em que vivemos seria composto por imagens que agem umas sobre as outras e dentre elas existiria uma imagem que é privilegiada: o corpo.
O corpo é capaz de agir conforme a sua vontade e responder aos estímulos do mundo de acordo com a necessidade, ou seja, ele não se fixa em reagir ao ambiente por meio de comportamentos mecânicos engessados. Isso porque a originalidade de suas ações se explica pela capacidade de o corpo ter em si o espírito como aquilo que se conserva integralmente como memória. Portanto, o corpo é uma imagem entre imagens, mas ele é uma imagem privilegiada por poder escolher como vai agir sobre a realidade e por gerar algo de novo a partir da ação que, a título de exemplo, pode ser muito bem observada no cotidiano do sujeito que se encontra numa rotina rígida de repetições e que, ao escutar o som dos pássaros ao amanhecer, relembra a sua infância, quando ia ao parque com seus pais, e acaba por decidir por ir à praça em vez do trabalho.
Para comprovar essa relação entre o corpo e o espírito, ao longo de Matéria e memória, Bergson divide sua obra em quatro grandes capítulos. Ele constrói sua argumentação ao longo do livro esclarecendo o papel do corpo como imagem privilegiada na totalidade das imagens-percepção, passando pela discussão do papel da memória em relação ao corpo, pelo aspecto do reconhecimento, da sobrevivência da memória como espírito, até a convergência do espírito e do corpo. A filosofia bergsoniana é puramente dualista, mas não oposta, pois há o elemento mnemônico que atua como conexão da matéria e do espírito. Matéria e representação, corpo e espírito, percepção e memória são de naturezas distintas, contudo, há uma união entre essa unidade de multiplicidades que o idealismo e o realismo jamais deram conta de explicar.
No entanto, não há facilidade nos textos bergsonianos. Entre as suas principais obras estão: Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (2020), A evolução criadora (2005), As duas fontes da moral e da religião (2005), O pensamento e o movente (2006) e o próprio Matéria e memória. Bergson apresenta uma escrita com muitos simbolismos e conceitos únicos de grande complexidade, por exemplo, “duração”, “intuição”, “caráter” e “élan vital”. Em Matéria e memória, mais especificamente, “imagem-ação”, “afecção”, “imagem-percepção”, “memória-hábito”, “memória-lembrança” etc.. Enfim, a leitura das obras pressupõe o intento do leitor em analisar minuciosamente a escrita do autor, retornar constantemente às páginas já lidas e se debruçar sobre os comentadores de sua filosofia, como Gilles Deleuze, Frédéric Worms, Bento Prado Júnior e Franklin Leopoldo e Silva.
Apesar da dificuldade de ler uma obra marcada pela grandiosidade e pela profundidade conceitual, ousado é aquele que dispõe de ânimo e valentia para se esgueirar pelos caminhos recônditos da filosofia bergsoniana. Contudo, quando os conceitos são esclarecidos pelo esforço e pela curiosidade do leitor que anseia por uma perspectiva que exalta a vida, percebe-se um encadeamento de ideias apaixonantes sobre o ser e a realidade. Seja para formação acadêmica ou não, qualquer pessoa deveria experimentar a aventura de pensamentos que a filosofia de Bergson proporciona. Desse modo, sobretudo para aqueles que concebem as belezas da diferença como as mais especiais para a reflexão e, em comum acordo com Deleuze (1999), somente Bergson foi capaz de identificar as diferenças de natureza de maneira tão logicamente revolucionária.
Aos que se interessarem, o Departamento de Filosofia da EFLCH-UNIFESP, em Guarulhos, São Paulo, oferece uma riquíssima orientação docente para leitura e aprendizado das obras bergsonianas. Em especial, a Profa. Dra. Rita Paiva (2005) nos convida a refletir sobre a profundidade e o encanto das obras de Bergson, além de exprimir a clássica indeterminação do pensamento filosófico presente nas obras bergsonianas. Bergson é um autor com um grande legado e impacto em nosso mundo contemporâneo, portanto, é preciso investigar quais são suas contribuições e quem são os pesquisadores bergsonianos no Brasil. Mesmo para o leitor não acadêmico, ler Bergson sempre será um envolvimento repleto de pensamentos, imagens e ações.
[Revisão de Natasha Garcia e Guilherme Baís. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
BERGSON, Henri. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Tradução de Maria Adriana Camargo Cappello. São Paulo: Edipro, 2020.
BERGSON, Henri. A evolução criadora. Tradução de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BERGSON, Henri. As duas fontes da moral e da religião. Tradução de Miguel Serras Pereira. São Paulo: Almedina, 2005.
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. Tradução de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 1999.
PAIVA, Rita. Subjetividade e imagem: a literatura como horizonte da filosofia em Henri Bergson. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, Fapesp, 2005.
[1] Professor de Filosofia da SED/MS – Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul. E-mail: jonathan.postaue@ufms.br
O artigo é o 20º texto da sexta edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Um enredo entre arte e filosofia, entrevista de Natasha Garcia com o filósofo e artista Thiago Moura, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/08/26/um-enredo-entre-arte-e-filosofia/.
- A situação da filosofia no mundo contemporâneo, segundo Badiou, de Luiggi de Barros Cestari e Pedro H. C. Silva, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/02/__trashed/.
- Amor, na falta e como negatividade, de Gabriel Pinheiro e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/09/amor-na-falta-e-como-negatividade/
- A filosofia experimental e a teologia na gênese da química moderna, de Lucas Mateus Barreiro Goes, David Monteiro de Souza Júnior e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/16/a-filosofia-experimental-e-a-teologia-na-genese-da-quimica-moderna/.
- O deslocamento da contemporaneidade, de Davi Molina e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/09/23/o-deslocamento-da-contemporaneidade/.
- Freud explica a influência da psicanálise no Brasil?, de Camila Polese de Oliveira, Lucas Giovani Novato Hernandez e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/30/freud-explica-a-influencia-da-psicanalise-no-brasil/.
- A marcha da filosofia e o contemporâneo, de Raphael Vicente da Rosa, Vinicius de Matos Meneguzzi e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/07/a-marcha-da-filosofia-e-o-contemporaneo/.
- Filosofia da psicanálise: um efeito da interlocução entre a filosofia e a psicanálise, de Cecília Castro Gomes e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/14/filosofia-da-psicanalise-um-efeito-da-interlocucao-entre-a-filosofia-e-a-psicanalise/.
- Reflexão sobre o romantismo na atualidade, Maria Clara de Freitas Barcelos e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/21/reflexao-sobre-o-romantismo-na-atualidade/.
- Afinal, o que é essa tal de psicanálise?, de Bruno Marques Ibanes e Weiny César de Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/28/afinal-o-que-e-essa-tal-de-psicanalise/
- A participação feminina na filosofia brasileira da psicanálise, de Maria Eduarda Rodrigues da Silva e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/04/a-participacao-feminina-na-filosofia-brasileira-da-psicanalise/.
- Repensar a pesquisa e a pós-graduação brasileiras, de Rafael Lopes Batista, Alberto Mesaque Martins e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/11/repensar-a-pesquisa-e-a-pos-graduacao-brasileiras/.
- Hip-hop, breaking e a filosofia, de Bergkamp Pereira Magalhães e Alberto Mesaque Martins, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/18/hip-hop-breaking-e-a-filosofia/.
- O romance familiar mitológico de Otto Rank, de Ana Tércia Rosa Alves e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/25/o-romance-familiar-mitologico-de-otto-rank/.
- A questão da tirania em La Boétie, de Lucas de Miranda Aguilar e Pedro H.C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/12/02/a-questao-da-tirania-em-la-boetie/.
- Psicanálise, velhice, tempo e luto, de Matheus Garcia Nunes, Weiny César Freitas Pinto e Pedro H.C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/12/09/psicanalise-velhice-tempo-e-luto/.
- Somos efetivamente livres?, de Natasha Garcia Coelho, Maíra de Souza Borba e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/12/16/somos-efetivamente-livres/.
- Música e pessimismo na filosofia de Arthur Schopenhauer, de Bárbara Walters e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/12/23/musica-e-pessimismo-na-filosofia-de-arthur-schopenhauer/.
- Filosofia e trabalho na sociedade, de Amanda Carvalho Padilha e Pedro. H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/12/30/filosofia-e-trabalho-na-sociedade/.