Podemos concordar com Marco Antonio Coutinho Jorge quando ele afirma no seu livro O laboratório do analista (Zahar, 2022, p. 247) que se trata de uma boa pergunta. Há uma afirmação implícita de que existe essa modalidade psicanalítica: lacaniana. Exatamente isso é que deve ser examinado na proposição ser lacaniano. O que resulta desse exame pode se revelar como nem tão óbvio, a exigir uma elaboração dos teóricos e praticantes da psicanálise.
Marco Antonio parte do senso comum, vai ao dicionário e escolhe um verbete que talvez seja o primeiro a dedicar atenção ao termo hoje tão disseminado. Diz o Houaiss: “Lacaniano: adj. Psicn. I. Relativo a Jacques Lacan, ou tipicamente característico de suas teorias psicanalíticas. 2. Que segue os métodos e conceitos de Lacan (diz-se de estudo, tratamento, diagnóstico). Adj S.m. Psicn.3. Que ou aquele que se especializa ou é adepto da teoria e/ou dos métodos de Lacan.”
Observa que no verbete não comparece o nome de Freud. Sabe-se que Lacan lançou o “retorno a Freud” como uma palavra de ordem ao meio analítico. “Será que o psicanalista que se orienta pelo ensino de Lacan definiria “lacaniano” da mesma maneira? É certo que não”, continua Marco Antonio. Lembra que o retorno teve uma série de impactos a partir dos anos 1950 quando começa o ensino de Lacan: 1. Os psicanalistas descobriram com espanto o quanto desprezavam uma obra que em alguns casos, em algumas sociedades de formação, sequer liam, substituindo-a por um resumo e uma “atualização” empobrecedores, conforme a radical denúncia feita publicamente por Helio Pellegrino, Eduardo Mascarenhas e Wilson Chebabi nos anos 1980, e publicada pelo Jornal do Brasil sob o título Os barões da psicanálise, de minha autoria. 2. Lacan batizou de Escola Freudiana de Paris a que fundou em 1964 depois de ter sido expulso e “excomungado” da IPA (International Psychoanalytical Association, fundada por Freud e Ferenczi em 1910). Marco Antonio lembra que Lacan criou a sigla SAMCDA, Sociedade de Auxílio Mútuo Contra o Discurso Analítico para ironizar a IPA. 3. Lacan dedicou grande parte de sua vida a produzir cerca de 30 seminários para comentar minuciosamente a obra de Freud. 4. Manteve uma dura e severa crítica à psicanálise pós-freudiana, caracterizando-a como uma forma de resistência e de recalque ao discurso analítico. 5. Sustentou a questão “O que é a psicanálise?”, sempre partindo de Freud para mostrar que as respostas não são óbvias.
Em 1980 Lacan fez seu último seminário, em Caracas, onde teria dito: “Cabe a vocês serem lacanianos. Quanto a mim, sou freudiano.” Vale ressaltar a prudência de Marco Antonio quanto ao “teria dito”. Talvez os historiadores – esses fofoqueiros sublimados – possam contribuir para confirmar aquela frase crucial. Duas coisas: por que preferiu Caracas e não Buenos Aires, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife, onde floresceram poderosas versões do seu ensino desde pelo menos 1970? A curiosidade de ver os efeitos do ensino já no fim da vida e sem que esses efeitos tivessem sido motivados por sua presença física provavelmente ficou satisfeita. Então, ensino e transmissão podem ocorrer sem a presença física do analista, coisa que experimentamos no atendimento on-line desde 2020 com a pandemia.
Marco Antonio insiste: “Com isso, não há como negar que Lacan fez uma derradeira indicação a seus discípulos: como ser lacaniano senão sendo, antes de mais nada, freudiano?” Segundo Marco Antonio, Lacan seria até mesmo “um hiperfreudiano”, explicando que o analista lacaniano seria mais freudiano do que aqueles que se dizem freudianos e não seguem Lacan.
Graças ao bem-sucedido esforço de Lacan em detonar as pretensões de “superar” Freud, como se ele estivesse “ultrapassado”, pudemos redescobrir Freud e constatar que a novidade Lacan – o surgimento de um pensamento inteiramente novo na psicanálise – é em última instância e surpreendentemente o pensamento de Freud. “Difundindo-se por todos os setores da teoria, o ensino de Lacan teve o valor de um verdadeiro ato analítico e resultou numa fecunda refundação da prática psicanalítica”, continua Marco Antonio. Agora que muitos achados de Freud são confirmados até pela neurociência, é espantoso deparar com frases do tipo “como fazer calar Freud”, proferida por Jacques-Alain Miller no seu livro Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos, p. 147. Miller parte da tese de que só há uma teoria em psicanálise: a de Freud. O resto é puro comentário, inclusive o do ultimíssimo Lacan: “Por mais longe que ele [Lacan] tenha avançado na topologia, nos nós, continuam sendo comentários de Freud” (p.147). O problema de Miller é, segundo argumenta, “como não se deixar sugestionar por Freud, como não deixar a teoria de Freud interferir demais com o que se passa na experiência. Mas, a essência da questão, me parece, são os comentários”.
Freud foi quem determinou o surgimento de um verdadeiro paradigma da psicanálise contemporânea – a tripartição dos registros real-simbólico-imaginário que caracterizam o falante se deve a segmentos muito precisos da obra freudiana. A lógica do significante delineada por Lacan depois da formalização de uma nova ciência, a linguística, já estava exposta por Freud desde pelo menos 1900 com A interpretação dos sonhos: o significante era chamado de “representante da representação”. A “tópica do imaginário”, assim chamada por Lacan, já estava explicitada pelo narcisismo introduzido por Freud, antecipando-se ao estádio do espelho de Lacan.
Marco Antonio estranha – e com razão – o surgimento de textos de jovens psicanalistas construídos “exclusivamente sobre categorias lacanianas, sem qualquer referência a Freud”. E há analistas nem tão jovens que chegam a dizer que ou bem você é freudiano, ou bem lacaniano, já que Freud e Lacan não se misturam, seriam até mesmo incompatíveis! “Os psicanalistas têm uma enorme responsabilidade – continua Marco Antonio – ao dar ênfase excessiva, e quase exclusiva àqueles elementos sobre os quais consideram que Lacan avançou para além de Freud: ao falarem reiteradamente do passe como o passo que Freud não ousou dar; do real como o nec plus ultra da, assim por eles denominada, última e certamente mais radical clínica lacaniana, etc., etc.” É preciso continuar dizendo que a chamada “clínica do real” esconde um reducionismo, por mais trabalhoso que seja defini-la como clínica do real, do simbólico e do imaginário. Marco Antonio acrescenta: “Certas estratégias discursivas pretendem frisar continuamente o quanto Lacan foi além de Freud, quando de fato deveriam frisar, antes de mais nada, o contrário: o quanto Lacan tem de freudiano. Será que Lacan autorizaria essas leituras, ele que afirmava, na conferência de Genebra sobre o sintoma, que nunca inovara em nada, que esse não era seu estilo e que era preciso resguardar-se de inovar? Para ele, o ancoramento na obra de Freud deve ser sempre reafirmado.”
Também é criticada por Marco Antonio uma tendência de contrapor “o aclamado rigor de Lacan a desenvolvimentos supostamente tateantes de Freud”, como se a obra de Lacan fosse “o único lugar em que a obra de Freud encontra seu sentido”. Marco Antonio propõe que se inverta essa tendência e se corra o risco de “uma transmissão freudiana da teoria lacaniana”. Assim, “ser lacaniano é retornar continuamente a Freud, no sentido de trabalhar para que a psicanálise – freudiana – tenha um lugar no mundo amanhã. E isso não parece nada garantido”.
O futuro da psicanálise ninguém sabe, assim como não se sabe que efeitos uma análise terá na vida de cada um que a ela se submeta. Parece uma daquelas coisas que os lógicos contemporâneos chamam de “indecidíveis”, o que não nos impede de conjecturar. Por exemplo, numa de suas últimas entrevistas, o psicanalista Horus Vital Brazil chegou a dizer que se a psicanálise não se abrir para as questões sociais vai desaparecer por efeito das tecnologias digitais. Será? E olha que ele sempre defendeu a posição de que não dava para prever que fim teria a análise. O que se pode constatar é que a psicanálise provoca em alguns um efeito de liberdade.
“O próprio Lacan”, diz Marco Antonio, “afirmou na importante entrevista de 1974 à imprensa italiana: ‘A psicanálise é um sintoma. Apenas é preciso compreender sintoma do quê. Mas vocês verão que se há de curar a humanidade da psicanálise. À força de mergulhá-la no sentido, no sentido religioso, se conseguirá recalcar esse sintoma’”. Marco Antonio adverte: “E, se a psicanálise dita lacaniana se transformar numa espécie de seita religiosa, ela própria bem pode contribuir com excepcional força para esse recalcamento”.
No Seminário 11 sobre os quatro conceitos – inconsciente/repetição, transferência/pulsão –, Lacan chegou a dizer que o estatuto do inconsciente é “ético, e não ôntico”. Podemos concordar com ele quando reconhece que no inconsciente se trata de valores, mas não do ponto de vista de uma ontologia, ainda que alguns admitam a ocorrência de uma “ontologia negativa” marcada pela falta-a-ser do falante. Esse campo de valores, segundo Horus Vital Brazil, estaria marcado por um estreitamento que acaba por reduzi-lo na contemporaneidade à supremacia de um único valor – o pragmático – em detrimento dos demais valores humanos. Associa-se a esse reducionismo o chamado imperativo do gozo tão bem descrito por Lacan como uma ordem emanada da tirania de um supereu que nos acomete hoje: Goza! miserável, goza até morrer! Desocupa o espaço, a fila anda, e rápido, já que não passas de um ser-para-a-morte, ou para-a-obra, tanto faz, São Paulo não pode parar! Sai o sujeito, entra o falasser, o consumidor.
Estaríamos vivendo o tempo das consequências de uma “polética”? E vai o neologismo ante a evidência de que se articulam as dimensões de um inconsciente politico anunciado por Lacan em meio à discussão sobre a diversidade de valores. Para um analista lacaniano, o inconsciente é a política. Não que a política seja inconsciente, e sim que ele não poderá ignorar que, para além da política partidária que agita os interesses da pólis, o inconsciente é incontornável. Só assim podemos admitir “a parte obscura de nós mesmos”, apontada pela historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco. Esse reconhecimento é que nos dá força para combater os efeitos mortíferos da eleição de Jair Bolsonaro e seus mordomos.
Aqui me parece que Marco Antonio chega ao ponto máximo de sua crítica. Trata-se da ritualização da prática analítica. Ela “tem a ver com a cegueira da afânise [desaparecimento], em que o sujeito se apaga sob o significante do outro: lacaniano. O significante lacaniano passa a impor de modo sub-reptício as chamadas sessões ultracurtas, o corte da sessão, o corte da palavra, o jogo de palavras; assim como o significante freudiano impunha anteriormente as sessões de cinquenta minutos e, com frequência, as interpretações psicanalíticas que injetavam sentido continuamente”. Podemos concordar com a crítica de Marco Antonio, pra lá de bem-vinda. Só teria a acrescentar o detalhe de que o modo de imposição do significante lacaniano em muitos casos não tem nada de sub-reptício, é manifesto, patente, e arrogante pela suposição de saber segundo a qual a teoria das incidências do tempo no tratamento analítico está pronta, acabada e concluída; a teoria das incidências do tempo no tratamento analítico não começa com o artigo sobre o Tempo lógico (1945 -1966). E se Lacan voltou a tratar do tempo num dos seus últimos seminários sobre A topologia e o tempo (1978), o sinal é de que a teoria foi apenas esboçada e não concluída. Mais uma vez, Freud antecipou-se – Análise terminável ou interminável, finita ou infinita (1937), como queiram –, ficando claro hoje depois de tanta elaboração que o uso do tempo a meu ver não passa de algo muito simples: a conveniência de cada analista, e também a conveniência do analisante, pois ele concorda ou não com o uso ritualizado das sessões curtas, e pode abandonar a análise e/ou o analista por esse manejo/manipulação do tempo.
Sabe-se que Lacan recomendava de início o uso prudente do tempo em sessões de duração variável, mas transigiu com sua prática. No fim da vida, usou sistematicamente as sessões curtas. O que se vê hoje é a ritualização denunciada por Marco Antonio. “O manejo do tempo de sessão é da ordem do laboratório do analista: esse é o sentido que se deve extrair da concepção lacaniana do tempo lógico. O analista não pode prever o tempo discursivo do sujeito, e sua uniformização leva ao desconhecimento dos ritmos individuais. Lidar com o tempo através de sessões curtas significa querer reduzir o campo da invenção, que requer arte e tato, a uma vertente pretensamente científica ao entronizar uma técnica lacaniana.”
Cirurgia sem anestesia, prática colada à mestria zen, forma requintada de sadismo, impedimento da fala do sujeito que é convidado a falar e em seguida lançado na perplexidade de ritualizados cortes abruptos (pois a “clínica do real” chegou na era da pós-interpretação), desertificação subjetiva, promotora do cinismo, pancadaria generalizada, Marco Antonio alinha uma série de argumentos, nomeia e critica diversos autores mui respeitáveis para questionar se as sessões curtas e ultracurtas não seriam a análise selvagem contemporânea. Seu livro merece ser debatido.