[Composição de cenas (des)encontro dos cenários: Glauco R. Gonçalves. Fotografias: Henrique de La Fonte]
até que evaporei
pela fresta cotidiana do ofício
tanto tempo perdido
buscando a infância
nos baldios quintais
do meu relógio
e já nem sabia esse regresso
o súbito gesto
de vasculhar a paisagem de ontens;
totens diluídos
pelo agrouro imanifesto.
(Pio Vargas)
1
Com uma dessas bicicletas alugadas eu andava com frio nas pernas pelos seus arredores. Procurava você, mas tinha como propósito encontrá-la na rua e não lá dentro. Me incomodava a ideia de entrar e você, que olha pra todos os lados ao mesmo tempo, não me ver, pois a multidão de turistas inviabilizava nossa mirada, mesmo pra você que tudo que é lado olha.
O encontro pela rua não ocorreu, já não me lembro se isso me frustrou. Depois, quando você chegou aqui, me disse que eu fui visitar o mictório, mas não fui vê-la. Talvez eu já soubesse, ou sentisse, que você lá dentro vivia sufocada. Sufocada por paredes que não se movem, por hordas fotográficas que atiram com os dedos contra você. Talvez eu já tivesse sacado que você queria ver o céu, ainda que este não cesse de despencar. Mas o teto do Louvre jamais saiu de cima da sua cabeça. E, por cima do teto, nem por um instante, o céu parou de cair.
A última parede que sobra é a em que estava pendurada, todas as outras demolidas. A única paisagem possível é a demolição.
2
Cansada de tanto branco, sai de férias para ver o resultado objetivo do mundo. Derrubado o céu, o que sobra é o chão: cheio de estilhaços. A maior das obras do Ocidente sai da catacumba (mausoléu) para visitar a obra por excelência da sociedade que a produziu: a destruição.
3
É aqui que seu sonho nômade toma corpo: entre caimentos você circula, não há parede branca quando tudo cai. Não mais mumificada, inventa-se como turista de escombros e seu aparecimento produz colisões de imaginários. Convulsões civilizacionais.
Brinca com a toxicidade financeirizada dos algoritmos para trazer o riso que antecede o vômito de quem olha com um pedaço de césio 137 dentro da boca.
4
Hora ou outra eu vejo você flutuando entre o que resta, conto-lhe dos cavaletes de cristal da Lina Bo Bardi e você escuta como se não os conhecesse. Seu sorrisinho agora, por um átimo, não mais sarcástico, mas doce.
Lido como doce, era na real irônico. Quando aqui você chegou, eu entendi que ele era o anseio da fuga, a ciência do movimento que inevitavelmente aconteceria. Seu corpo de quadro cavalgaria no mundo do brilho azul radioativo, entre o mar de barracas de lona azul, embaixo do céu do cerrado e seu azul que brilha muito, mas menos que o césio.
5
Voyeur dos caimentos do concreto armado. Cínicas situações imagéticas. Microtratado tátil. Guia turístico de abandonos. Paisagista de catástrofes. Sobra do mundo um antimuseu, onde reinam absolutos só restos, resíduos, raspas, rasuras, fraturas.
6
Seu corpo-imagem desfruta paisagens à margem. A maior das obras: destruir, sugar, extrair, intoxicar, carbonizar, bombardear, fraturar a Terra toda, a porra toda. Seu sorriso sórdido é a expressão mais bem acabada de um mundo que não cessa de acabar. Seus amigos-vizinhos europeus têm compulsão pela combustão do mundo (Mbembe).
7
Não me surpreendo quando você me conta que chegou aqui caindo em um dos paraquedas coloridos projetados por Aílton Krenak. Me faz lembrar da noite no fim de 2019 em que ele esteve aqui pra nos contar que o capitalismo deu metástase.
8
Há elos globais em cada baldio local. Estéticas universais em estado de casa desabada. Microcartografias da catástrofe rumam às arqueologias de um futuro pós-antrópico. Poderia ser Alepo, Jericó, Mogadício, Kiev, Capão Redondo, Djamena, Faixa de Gaza, Damasco. Poderia ser no miolo dos prédios que, construídos pela milícia, desabaram em Rio das Pedras naquela manhã de 12 de abril de 2019. Mas é aqui na quase pacata cidade de Goiânia, que como toda e qualquer outra tem sua cota de cara do mundo, a cara da queda, a paisagem dos caimentos, a cena síntese do mundo: o escombro. Cada escombro é uma espécie de arquivo vivo do desabamento do céu.
9
A potência desconcertante do incômodo, o baldio por excelência, o após dos cômodos, o desmoronar puro das comodidades do lar. O fim da família em estado de formas, grifado na casa caída.
10
Você me conta do seu espanto – encanto com esse calor insuportável das tardes deste seco setembro. Não reclama, ao avesso, desfruta do raio de sol que surge entre buracos do teto e da parede e a atinge em cheio, varando suas bochechas, mudando sua pigmentação. Você me conta do plano de jamais voltar. Lembro-lhe de que, mesmo que quisesse muito, o impossível se imporia. Já não há voltas, jamais houve.
11
Turistificar desabamentos cotidianos, passeio na anticasa. Sala de mal-estar. Rir. Ruir. Ruína. Museu de restos: Museu do Depois do Amanhã.
Microcartografias do desabamento. O corpo como mapa do mundo que desaba.
12
Depois eu largo você no meio do córrego da marginal Botafogo, com pesar pouco da sua partida, da saudade inventada que já me toma, mas entendo seu pleito e nado junto a ele. É bonito seu projeto, quase posso ver você correndo rio adentro até chegar desmanchada nos braços de Iemanjá. Quantos dos seus fragmentos terão a chance de subir junto a alguma corrente marítima e dar na costa de alguma praia gelada perto do museu mausoléu que a confinou por séculos? Decrépitos curadores tentarão em vão coletar seus parcos e molhados pedaços lançando-os desesperadamente de volta em alguma parede branca? Lá ainda haverá paredes? Lá ainda haverá céu?