[Coautor: Flávio Amorim da Rocha[1]]
Não é novidade para ninguém que vivemos na era digital. Divididas em períodos, as gerações são categorizadas em Millennials, Z e Alpha, sendo esta a mais recente, que abrange os anos de 2010 até a atualidade, conhecida como geração dos “nativos digitais”. As crianças estão aprendendo a manusear as telas mais rapidamente que nunca e uma das consequências desse acesso precoce é a descoberta e a utilização das redes sociais. Ao encontrar esse mundo mágico de influenciadores, vídeos curtos e fotos aos montes, a infância tem sido ameaçada por dois grandes vilões do desenvolvimento infantil: o excesso de informação contida nessas redes e a gama de problemas relacionados à autoimagem que esse contato proporciona.
Segundo o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), em 2023, cerca de 88% dos usuários de internet de 9 a 17 anos no Brasil mantinham perfil em redes sociais e os aplicativos mais usados por esses jovens eram o Instagram e o TikTok. Já entre as crianças de 9 a 12 anos, a quantidade de usuários do TikTok é maior que a do Instagram, ainda que as diretrizes do aplicativo chinês proíbam usuários menores de 13 anos. É um sinal alarmante. Já parou para pensar no tanto de informação que você consome ao abrir o TikTok por 5, 10 minutos? Fazendo uma conta de matemática básica e considerando que a média de duração de um vídeo curto é de 15 segundos, utilizar o TikTok por 5 minutos permite ao usuário assistir a um total de 40 vídeos. Agora imagine isso na mente e no imaginário de uma criança que utiliza as redes sociais por 4, 5 horas ao dia.
Estamos todos expostos a conteúdos diversos de milhares de pessoas diferentes, conteúdos bons e ruins, contraditórios e informativos; e esse excesso de informação massificada, rápida e dualizada é um dos principais obstáculos para o desenvolvimento neural infantil. Segundo a pesquisadora e doutora em psicologia Dhayana Bender (2024), o “alto uso de telas pode levar a atrasos no desenvolvimento motor, psicossocial, cognitivo e de linguagem, além de reduzir habilidades de atenção e autocontrole”, ou seja, as habilidades mais essenciais durante o crescimento das crianças.
Já nas escolas o problema é outro. A falta constante de foco e concentração na sala de aula está intimamente relacionada às redes sociais de vídeos curtos, principalmente o TikTok. Para compreender essa relação, é necessário entendermos primeiramente como a dopamina – uma das nossas moléculas responsáveis pelo prazer e pela motivação – funciona. A dopamina é um neurotransmissor liberado no cérebro quando fazemos algo prazeroso como comer, jogar videogame ou viajar. Não sendo uma coincidência, as plataformas sabem exatamente como despertar essa sensação gostosa em você e isso acontece por meio do famoso algoritmo. Como retratado no documentário O Dilema das Redes, as redes sociais são projetadas para que você fique imerso por horas naquela “realidade” e pior: fazem com que você sinta falta e desconforto na ausência dela, como uma abstinência.
Essa abstinência, como ocorre na interrupção de diversas outras drogas, causa imensa falta de foco e concentração, tanto para os adultos quanto para as crianças e adolescentes em situação escolar. Segundo o PISA 2022, 8 em cada 10 estudantes de 15 anos se distraem durante as aulas em função do uso do celular. Com tantas informações tão atrativas em pouco tempo, é comum que na sala de aula os professores precisem disputar a atenção dos alunos.
Outra situação que pode ser observada nas redes é a alusão ao (ou ilusão do) corpo perfeito. Com as tecnologias atuais, é possível modelar o corpo em fotos e postá-las sem muitas preocupações com julgamentos e comentários maldosos, pois a edição é, na maioria das vezes, imperceptível. Uma cintura mais fina, quadris mais largos e um corpo sensual se torna o desejo e a meta de muitas crianças e adolescentes que estão começando a moldar a sua personalidade, o que pode acarretar comparações irreais dos seus próprios corpos com os corpos que veem nas redes. Por si só, uma situação desse tipo pode ser o ponto inicial para o desenvolvimento de uma dismorfia corporal, baixa autoestima, transtornos alimentares e até mesmo depressão.
Mesmo que em 2019 o Instagram tenha removido a função de mostrar o número de curtidas em publicações, é difícil se deparar com aqueles corpos esculturais e rostos sem rugas nem espinhas das fotos publicadas nas redes e não se sentir insatisfeito consigo mesmo. Segundo a psicóloga Karla Cardoso (2021), a “influência interna tem como base a percepção que temos de nós mesmos, a nossa autoavaliação. O que acontece muitas vezes é que, por meio das redes sociais, acabamos nos comparando com outras pessoas que estão em realidades completamente diferentes, como famosos ou influencers”. E ainda afirma: “Pessoas mais jovens, ou que passam mais tempo de olho nas redes sociais, são as mais afetadas por esse efeito”.
A abstinência de dopamina liberada pelos vídeos curtos, a falta de atenção, o atraso no desenvolvimento cognitivo e a diminuição da autoestima são somente alguns pontos que têm raízes no excesso de informação e nos problemas de autoimagem. Nessa era na qual a informação vem aos montes, é necessário um olhar mais cuidadoso e especial para as crianças e adolescentes que estão iniciando a construção de suas personalidades, a fim de protegê-las dos inúmeros malefícios que o acesso precoce a essas redes acarreta, e buscar minimizar os danos causados anteriormente por não termos, à época do desenvolvimento desses aplicativos, o conhecimento de seus danos.
[Revisão de Flávio Amorim da Rocha. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
REFERÊNCIAS
CETIC. Crianças Estão Se Conectando à Internet Mais Cedo No País. Cetic.br – Centro Regional Para O Desenvolvimento Da Sociedade Da Informação disponível em: https://www.cetic.br/pt/noticia/tic-kids-online-brasil-2023-criancas-estao-se-conectando-a-internet-mais-cedo-no-pais/. Acesso em 16 set. 2024.
NETFLIX. O dilema das redes. Disponível em: https://www.netflix.com/br/title/81254224. Acesso em: 16 set. 2024.
SINESP. Debate sobre proibição do uso de celular nas escolas avança depois do Pisa apontar que aparelho atrapalha desempenho de alunos. SINESP. Disponível em: https://www.sinesp.org.br/noticias/educacao-na-midia/18701-debate-sobre-proibicao-do-uso-de-celular-nas-escolas-avanca-depois-do-pisa-apontar-que-aparelho-atrapalha-desempenho-de-alunos. Acesso em: 16 set. 2024.
BENDER, Dhayana. YouTube e TikTok podem causar problemas cognitivos e sociais em crianças: como combater. Disponível em : https://noticias.cruzeirodosuleducacional.edu.br/youtube-e-tiktok-podem-causar-problemas-cognitivos-e-sociais-em-criancas-como-combater/. Acesso em : 20 set. 2024
CARDOZO, Karla. O impacto das redes sociais na autoestima. Psicóloga Karla Cardozo. Disponível em: https://psicologakarlacardozo.com.br/blog/o-impacto-das-redes-sociais-na-autoestima/. Acesso em: 16 set. 2024.
[1] Professor de língua portuguesa, literatura e língua inglesa do IFMS, Campus Campo Grande – flavio.rocha@ifms.edu.br.
O artigo de hoje é o 19º texto da sétima edição do Projeto Ensaios, chegamos ao centésimo texto publicado do projeto, desde o seu início. O Projeto Ensaios é um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Efígie, de Paola Dias Bauce, disponível em: https://ermiracultura.com.br/2024/06/01/efigie/.
- “Van Filosofia”: um passeio pelas ruas de Campo Grande, de Herma Aafke Suijekerbuijk, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/08/van-filosofia-um-passeio-pelas-ruas-de-campo-grande/
- Superação e retorno à metafísica, de Cristian Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/15/superacao-e-retorno-a-metafisica/.
- Distopia do capital: o realismo capitalista e a devastação ambiental, de Anthony Franklin Prates Carvalho e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/22/distopia-do-capital-o-realismo-capitalista-e-a-devastacao-ambiental/
- Vínculo e psicanálise, de Caroline S. dos Santos Guedes, Weiny César Freitas Pinto e Natasha Garcia Coelho, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/29/vinculo-e-psicanalise/.
- Máquinas podem pensar como humanos?, de Kauê Barbosa de Oliveira Lopes e Jonathan Postaue Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/06/maquinas-podem-pensar-como-humanos/.
- Qual é o lugar da literatura?, de Maria Clara Barcelos e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/13/qual-e-o-lugar-da-literatura/.
- Ricoeur: leitor e intérprete de Freud, de Pedro H.C. Silva, Gabriel Santana e Paula Mariana Entrudo Rech, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/20/ricoeur-leitor-e-interprete-de-freud/.
- As profissões imperiais no Brasil: uma majestade inabalável, de Guilherme Giovane Ribeiro de Moraes e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/27/as-profissoes-imperiais-no-brasil-uma-majestade-inabalavel/.
- Freud convida Schopenhauer e Nietzsche, de Iolene Aparecida Seibel e Natasha Garcia Coelho, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/03/freud-convida-schopenhauer-e-nietzsche/.
- Psicogênese e educação infantil, de Giovana Santos, Lucas Aguiar e Amanda Malerba, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/10/psicogenese-e-educacao-infantil/.
- O devir do escritor filósofo, de João Pedro da Silva e Vitor Hugo dos Reis Costa, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/17/o-devir-do-escritor-filosofo/.
- Quem pode ser considerado “o pai” de uma teoria científica?, de Davi Barbosa Ferreira e Weiny César Freitas Pinto, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/24/quem-pode-ser-considerado-o-pai-de-uma-teoria-cientifica/.
- Nietzsche e a naturalização do conhecimento, de Francisco de Paula Santa de Jesus, Raphael Vicente de Souza e Pedro H. C. Silva, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/31/nietzsche-e-a-naturalizacao-do-conhecimento/.
- Estaríamos dependentes daquilo que nos adoece?, de Natália Nazário e Alberto Mesaque Martins, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/09/07/estariamos-dependentes-daquilo-que-nos-adoece/.
- Os sonhos e suas implicações filosóficas, de Jonathan Postaue Marques e Vitor Hugo dos Reis Costa, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/09/14/os-sonhos-e-suas-implicacoes-filosoficas/.
- Liberdade de expressão: a cultura do cancelamento, de autoria coletiva, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/09/21/liberdade-de-expressao-a-cultura-do-cancelamento/.
- A ideia do progresso como forma de desvalorização das ciências humanas, de Erick Pereira Calauro e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/09/28/a-ideia-do-progresso-como-forma-de-desvalorizacao-das-ciencias-humanas/.