Já faz algum tempo que ela se foi, mas eu simplesmente não tive tempo de pensar, de me manifestar, de sentir. Sentir? Sim. Não nos conhecíamos (claro!), eu nem mesmo era uma súdita, nada. Mas ela me falta muito, pois viveu durante longo tempo na minha cabeça, refúgio mental em situações longas, estressantes, moedoras.
E eu, quando eu digo moedoras, não é uma metáfora criada a partir da imagem daquela carne que a gente comprava no açougue, levava para casa e moía grosseiramente naquela máquina de moer caseira. Não. Eu imagino aquela carne fininha, uniforme, compacta, triturada no processador. Mas, enfim…a rainha. Era nela que eu pensava, com meu cérebro também moído, pastoso, pesado, com pouco espaço para pensamentos próprios.
Começava assim: o que a rainha está fazendo neste exato momento, enquanto estou aqui, vivendo essas situações? Será que ela está dando um bordejo por Londres, vestida com um daqueles maravilhosos figurinos monocromáticos? Imagino que alguns membros da realeza tenham tentado convencer a rainha de que branco/cinza/bege/preto/marinho é que seriam cores (?) chiques e apropriadas para sua (dela) idade e combinariam mais com o título majestoso que ela ostentava. Mas ela que, além do título, também tinha “cabelo nas ventas”, como se diz por aqui, nunca caiu nessa historinha boba, destacando-se também por um estilo muito pessoal, lindo e colorido.
Ignorando totalmente a questão do fuso horário, eu imaginava algumas cenas que poderiam ou deveriam ser reais.
Cena 1: a rainha está em seu quarto, sozinha. Sim, ela tem seus aposentos reais, que divide com o príncipe consorte, mas reserva para si um aposento particular, para pensar nos seus deveres como rainha e nos imbróglios familiares e também (por que não?) desfrutar de agradáveis momentos solitários, afundada em almofadas, à luz do abajur, aquecida por uma manta de merino, bebericando um licor de cassis e lendo Dorothy Parker sem ser interrompida, num silêncio denso e absoluto. Ela se identifica com Dorothy Parker principalmente na ironia e no sarcasmo, atitudes que ela não se permite em público, limitando-se a um fugidio olhar de desdém ou a um cerrar de lábios, o que tem acontecido com milimétrica escassez nas aparições oficiais.
Na leitura de alguns contos da genial jornalista, ela não se contém e deixa escapar distintas e deliciosas risadinhas reais, acompanhadas de drágeas de Bendicks Bittermints*. Quanto ao quarto exclusivo, nada permite imaginar um relacionamento conjugal estremecido, nada disso. O príncipe sempre foi um marido zeloso, protetor, atencioso, que nunca deu motivos para comentários maldosos ou insinuações levianas. Um defeito, se é que isso poderia ser considerado um defeito: pés muito gelados no inverno, não obstante o aquecimento funcionando maravilhosamente. O fato é que ele sempre se recusou a usar meias de lã, mesmo com a insistência contínua da esposa, que acabou se acostumando com um pé gelado tocando o seu e fazendo com que ela despertasse assustada no melhor do sono.
Cena 2: a rainha percorre os aposentos do palácio e se detém diante da porta entreaberta da cozinha, ambiente fundamental, mas que não ocupa seus pensamentos. Ela come bem, com parcimônia, procurando manter a forma para agradar a si mesma, mas ciente também de que a figura de uma rainha obesa nunca fez parte do imaginário dos ingleses, embora seja radicalmente contra o padrão de beleza feminina que impõe a magreza como único ideal aceitável na sociedade atual. Mas, daí a se interessar pelo que acontece naquele ambiente, a distância mental e física é grande. Então, ela escuta uma música que a deixa extasiada. Esticando o olhar porta adentro, ela vê que o som vem da grande televisão numa das paredes da cozinha, instalada recentemente, com um único canal musical, para que os funcionários tenham alguma distração durante o trabalho e não se preocupem tanto com os elevados impostos pagos à Coroa. Na legenda, ela lê: Tom Waits. Daí, a sacar o celular real é um passo. Ou melhor, centenas de passos até chegar à suíte real, se trancar no banheiro, se sentar na confortável poltrona que ela usa para ser maquiada e penteada, e pesquisar sobre o cantor/compositor. Ela cerra os olhos e se delicia com a música e a voz rouca de Tom, complemento perfeito para aquela tarde cinzenta e chuvosa da invernal Londres, sem pensar nos minutos que se escoam e se transformam em horas, segura de que não será incomodada, pois já deu ordens expressas de não ser perturbada quando estiver naquele recinto, mesmo que Londres esteja sendo bombardeada e o palácio tenha sido invadido por um sanguinário grupo terrorista.
Cena 3: as obrigações familiares, as funções da realeza, os infindáveis protocolos e compromissos deixam pouco tempo para que a rainha se dedique a atividades prazerosas como passeios pelos jardins, idas ao teatro, assistir filmes e séries, leituras de romances, sonecas após o almoço, reuniões informais com as amigas… então durante algumas reuniões enfadonhas com outros membros da realeza e altos funcionários do palácio, ela lança mão discretamente do celular (razão pela qual optou por usar roupas com bolsos nessas ocasiões) e pesquisa sobre variados assuntos, alegando que está acompanhando o movimento da bolsa de valores para saber que decisões tomar em questões orçamentárias. Numa dessas, se deparou com uma matéria mostrando a beleza de algumas praias brasileiras e louvando nossa culinária. Palavras estranhíssimas surgem diante de seus olhos: pirão, acarajé, mungunzá, pé-de-moleque, mané-pelado, feijoada… bom, feijão ela já provou quando esteve no Brasil, há várias décadas, mas o que seria a tal feijoada? Ao príncipe, ela incumbe a tarefa de repassar a ordem de preparar uma feijoada para o almoço do dia seguinte, casualmente um domingo. E não é que deu tudo certíssimo? Com todos os acompanhamentos e, de bônus, a famosa caipirinha. Perfeita para aquele clima frio, simples, saborosa, nutritiva, restauradora, substanciosa, sem frescuras. Não seria exagero dizer que nesse dia Sua Majestade se sentiu refeita, satisfeita e até mesmo mais forte, mais preparada para enfrentar dissabores corriqueiros, como as fofocas dos famigerados tabloides sensacionalistas envolvendo a família real britânica. De quebra, instaurou-se entre os comensais uma nova regra de etiqueta: pegar a costelinha de porco com as mãos e chupar os ossinhos.
Cena 4: um sábado bem bonito, com um solzinho tênue atravessando as cortinas de veludo entreabertas. A rainha desperta de um sono profundo e vê que o príncipe Philip não está a seu lado. Pela primeira vez, em muitos anos, ele não a saudou com o costumeiro good morning, my dear. Vai até a biblioteca e o encontra sentado em sua poltrona que, se não é a Mole, do Sérgio Rodrigues, é quase tão confortável quanto. No entanto, seu semblante está nublado, a testa franzida, os lábios comprimidos, visivelmente contrariado. Ao ouvir os passos da rainha, ele tenta esconder o jornal que tem nas mãos, mas de nada adianta. Ela exige que ele lhe passe o jornal, ao que ele atende prontamente, pois ela é a RAINHA, ora bolas. Por infelicidade, é justamente o jornal que traz aquela matéria que descreve com sádica minúcia a relação próxima entre o príncipe Andrew e o criminoso sexual Jeffrey Epstein. E, mais, o texto é acompanhado da comprometedora foto do príncipe com uma menor de idade (ah, esses tabloides!). A cabeça da rainha começa a doer instantaneamente e seu rosto se incendeia de vergonha. Fracamente, ainda meio tonta, ela se apoia na poltrona e pede ao marido que cancele todos os seus compromissos oficiais. Ele pergunta por quanto tempo ela pretende adiar sua agenda real, e ela decide: pelos próximos seis meses. Intimamente, ela se consola com o fato de que finalmente vai ter tempo para se dedicar à leitura da obra completa de Dostóievski, pois conflitos internacionais à parte, ela sempre nutriu grande admiração pelos autores russos realistas.
Nesse momento, percebo que nem a rainha escapa da vergonha avassaladora pela qual todos nós passamos uma e outra vez, ou muitas e outras muitas vezes, na nossa existência terrena. Ela também não era imortal, como aventou o Leandro Karnal em uma de suas palestras, comparando-a a Highlander, o guerreiro. Em mim, restou a falta irremediável de sua presença involuntária, de sua imagem forte e, ao mesmo tempo, doce e amável. E de sua indiscutível e colorida elegância.
Rest in peace, my dear queen.
*Marca de chocolate britânicos.