“Vivam as mulheres! Viva o bom vinho! Suporte e glória da humanidade!”
A frase acima daria até uma interessante, e provocativa, palavra de ordem em um protesto feminista – como a celebrar, num clima de júbilo e alegria, o poder feminino –, não tivesse ela ficado célebre na voz de um perfeito cafajeste. Porque o homem que enaltece dessa forma as mulheres é ninguém menos que Don Giovanni, o cruel galanteador que encarna o anti-herói de uma das obras-primas que nos foi legada pelo gênio de Mozart: a ópera Don Giovanni, com libreto de Lorenzo da Ponte, inspirado por, sua vez, no personagem Don Juan, cuja lenda curiosamente foi inventada por um religioso católico, o monge espanhol Tirso de Molina, no século XVII.
O libertino saído da imaginação de um monge exerceu um forte fascínio em vários grandes nomes das artes. Um deles foi Molière, que o caracterizou como um ateu cínico e rebelde na peça Don Juan et le Festin de Pierre (Don Juan e o Convidado de Pedra). Mas a parceria entre Mozart e Da Ponte – que já havia alcançado um êxito imenso com a ópera As Bodas de Fígaro – soube explorar como ninguém o fizera até então esse personagem multifacetado e pleno de ambiguidades, além de conferir-lhe novas dimensões. ´
Assim, à medida que o enredo da ópera se desenrola, vão surgindo em cena as várias facetas do personagem. A primeira e mais explícita é a do devasso que trata suas amantes como objetos descartáveis, retratada à perfeição por uma das árias mais famosas da ópera, interpretada por Leporello, servo e cúmplice de Don Giovanni, na qual ele enumera, em tom de mofa, as conquistas do mestre: 650 mulheres na Itália, 231 na Alemanha, uma centena na França, 90 na Turquia e, na Espanha (cenário da história), 1.003! É preciso dizer que nem todas as relações presentes neste catálogo de orgias parecem ter obtido o livre consentimento das parceiras, se levarmos em conta a cena inicial da ópera, em que Don Giovanni tenta, sem sucesso, literalmente violentar Dona Anna – dessa forma, mais do que um conquistador, ele seria mais apropriadamente denominado hoje um assediador sexual em série.
Porém, ao lado desse traço mais proeminente do caráter de Don Giovanni, também aparecem ora o romântico que nos faz até acreditar que se apaixona sinceramente a cada nova sedução; ora o subversivo que confronta os códigos de moral e conduta e a ordem estabelecida de sua época; ora o fanfarrão que pode ser visto como uma caricatura da aristocracia em decadência. A se juntar a esses vários perfis, há ainda o do homem em revolta metafísica contra a Criação, o qual se revela ao final da história, quando Don Giovanni confronta o fantasma do Comendador, o pai de Dona Anna a quem assassinara de forma covarde. Provocado pelo espectro do Comendador, que o ameaça com a danação eterna no inferno caso não se arrependa de sua vida de crimes e devassidão, Don Giovanni prefere sucumbir à maldição – o “não” obstinado que profere à proposta de salvação da sua alma ecoa como uma trágica exaltação da sua humanidade pecadora e imperfeita.
Mozart classificou Don Giovanni como um “dramma giocoso”. A composição alia elementos da opera buffa e da opera seria, uma estratégia sem dúvida para reforçar o caráter ambivalente da obra, que se alterna entre o tom irreverente e irônico, às vezes até apelando para a bufonaria, com passagens de teor mais elevado e moralizante. Interessante notar que a ala masculina do elenco é a que mais reforça o acento cômico, a começar pelo protagonista. Mozart e o libretista Da Ponte retrataram o incorrigível mulherengo não no auge, mas na decadência – no decorrer da história, Don Giovanni não obtém êxito em nenhuma das suas atrapalhadas tentativas de sedução, de uma dama da alta corte (dona Anna) às criadas que, diga-se de passagem, são as suas preferidas. O servo Leporello, por sua vez, sempre leva a pior nas malfadadas aventuras de alcova do mestre. O camponês Masetto, noivo de Zerlina, é um pobre coitado, impotente diante das investidas explícitas de Don Giovanni para arrebatar a sua prometida. Mesmo Don Ottavio, noivo de Dona Anna, que atua como uma espécie de contraponto ao anti-herói protagonista, é uma figura patética, um homem afetado, indeciso e pusilânime, incapaz de qualquer reação diante das ofensivas do seu adversário.
As mulheres, pelo contrário, são personagens fortes, resolutas, impetuosas. Dona Anna é dotada de um espírito ardente, sedento por justiça, que não se conforma com o assassinato do pai e clama pela punição do culpado. Zerlina, a radiante noivinha de Masetto, apesar de se sentir atraída pela lábia de Don Giovanni, nada guarda do estereótipo da mocinha ingênua. Ela irradia sensualidade e vitalidade, como uma mulher plenamente ciente do seu poder de sedução. Fechando o trio de tipos femininos, Dona Elvira reforça o apelo trágico da obra, na pele de uma das vítimas de Don Giovanni que, mesmo desonrada e desprezada por ele, não consegue se libertar da paixão pelo libertino. Ela enfrenta o rígido código de conduta de seu tempo, abandona tudo e sai no encalço de Don Giovanni, arrastada por um misto de ódio e amor desesperado e dividida entre o dever moral de desmascarar o ex-amante, evitando que ele arruíne a vida e a honra de outras mulheres, e o ímpeto de protegê-lo dos seus perseguidores.
Don Giovanni estreou em Praga em 1787, portanto, apenas dois anos antes da eclosão da Revolução Francesa, que provocaria um turbilhão em toda a Europa. Mozart era um entusiasta dos ideais iluministas – como ficaria mais explícito em A Flauta Mágica, sua última ópera, cuja estreia se deu em 1791, em Viena −, e seu Don Giovanni não deixa de ser um retrato de um ordenamento social e político à beira de entrar em colapso, assim como um prenúncio de um novo tempo prestes a se instaurar. A força e a potência de suas personagens femininas também seriam prova da intuição deste gênio visionário quanto à futura, repleta de percalços e ainda longe de ser plenamente alcançada emancipação das mulheres? É difícil dizer, mas é magnífíca a forma como esse prodígio musical fez das vítimas de um assediador decadente personagens dotadas de dignidade e altivez e determinadas a conduzir seus próprios destinos.
Gostei parabéns
Rosângela, adorei. Para Lacan, Dom Giovanni, dom Juan, é uma fantasia feminina. Esse homem super potente capaz de conquistar todas as mulheres.
Ótimo texto, como tudo q vc escreve. Bj
Parabéns pelo texto. ótimo. Bj
Delícia de texto! Parabéns, mais um entre tantos que merece!
Delícia de texto! Li em fôlego só, encantada!
Delícia de texto! Meu presente de hoje!