Eugenio Montale (1896-1981) é, sem dúvida, o maior poeta italiano da primeira metade do século XX. Suas atividades de crítico, resenhista, jornalista cultural do Corriere della Sera e tradutor ajudaram a construir essa figura gigantesca, que em 1975 recebeu o Prêmio Nobel. Seu primeiro livro e talvez o mais famoso no Brasil é Ossos de sépia (1925), que, na época do lançamento, teve uma recepção não muito positiva, mas logo depois entrou para sempre na história da poesia. Um vocabulário e imagens trabalhadas que condizem com a atmosfera hermética da época.
Montale escreveu depois outros livros que continuaram construindo um percurso próprio e singular, que foi deixando muitos herdeiros como Vittorio Sereni, Giorgio Caproni, Andrea Zanzotto, Enrico Testa e Valerio Magrelli. O que é interessante notar ao longo dos anos é como ele vai se relendo e mudando o tom e a linguagem, na direção de uma “poesia inclusiva”.
Os dois poemas propostos em tradução foram escritos na metade da década de 1960 e publicados em Xenia, termo que é uma retomada de composições do poeta latino Marcial e que na Grécia antiga significava os dons ou presentes feitos aos hóspedes. Depois esses e os demais poemas de Xenia entraram, em 1971, como parte de Satura, livro ainda sem tradução, infelizmente, no Brasil.
É com ironia que Montale, a partir de ocasiões comuns, cotidianas e breves lembranças, inicia um diálogo com Drusilla Tanzi, sua companheira de vida, que morreu em 20 de outubro de 1963. Um detalhe importante: o apelido de Drusilla é Mosca, devido às grossas lentes e à armação dos óculos, porque ela era muito míope. A referência à miopia fica mais clara no segundo poema.
Xenia
1
Caro piccolo insetto
che chiamavano mosca non so perché,
stasera quasi al buio
mentre leggevo il Deuteroisasia
sei ricomparsa accanto a me,
ma non avevi occhiali,
non potevi vedermi
né potevo io senza quel lucicchìo
riconoscere te nella foschia.
Querido miúdo inseto
que chamavam de mosca não sei por quê,
hoje perto do escurecer
enquanto eu lia o Dêutero-Isaías
você reapareceu ao meu lado,
mas não tinha os óculos
não podia me ver
nem eu podia sem aquela centelha
te reconhecer em meio à caligem.
2
Senza occhiali né antenne
povero insetto che ali
avevi solo nella fantasia,
una bibbia sfasciata ed anche poco
attendibile, il nero della notte,
un lampo, un tuono e poi
neppure la tempesta. Forse che
te n’eri andata così presto senza
parlare? Ma è ridicolo
pensare che tu avessi ancora labbra.
Sem óculos nem antenas
pobre inseto que asas
só tinha na fantasia,
uma bíblia em frangalhos e ainda pouco
confiável, o negro da noite,
um raio, um trovão e depois
nem a tempestade. Talvez você
tenha ido embora tão cedo sem
um adeus? Mas é ridículo
pensar que você ainda tivesse lábios.