[Coautora: Amanda Malerba [1]]
A rapidez dos processos e a eficiência cibernética que predominam no mundo atual influenciam profundamente o universo psicoemocional e as relações intersubjetivas, com notas intensas de instantaneidade, fugacidade e superficialidade. Os primeiros 20 anos do século XXI têm revelado grandes desafios, especialmente no desenvolvimento infantojuvenil, nas relações afetivas familiares e naquilo que se consagrou denominar de realização pessoal. É necessário pensar a respeito das transformações tecnológicas e eletrônicas, atravessadas pelas mudanças impostas pela pandemia desde 2020, no que tange às relações sociais, às novas formas de trabalho e, por fim, às experiências individuais com o prazer, com as frustrações e com o desejo.
Em seu livro Nação dopamina (2021), a psiquiatra Anna Lembke alerta para o sofrimento que pode resultar do uso excessivo de instrumentos na busca do prazer e na fuga de frustrações, tais como redes sociais, jogos, drogas, comidas, consumo, sexo e pornografia. A superabundância e o aniquilamento do desejo se fazem mais prementes quando a civilização pós-moderna se depara com os efeitos de dois anos de pandemia, com novos protocolos de vida em sociedade e profundas mudanças nas relações de trabalho, nas formas de ensino e nos modelos de desenvolvimento de crianças e adolescentes, a quem se impôs, de repente, o isolamento e a abstenção de práticas sociais.
É possível que no âmago da problemática suscitada pela autora esteja a revolução cibernética, cujas ideias germinais remontam à década de 1940, durante e logo após a Segunda Guerra, mas que vieram a se materializar somente a partir da década de 1990, alcançando o cotidiano das pessoas comuns a partir da popularização do PC e da ampliação da internet para os domicílios. Em poucos anos, com os smartphones, o acesso e a rapidez das informações atingiram níveis imaginados por poucos. A instantaneidade das respostas (fim das dúvidas e fragmentação do conhecimento) e das comunicações audiovisuais (superação das distâncias), o realismo das mídias que perpetuam momentos (aparente eliminação do passado), o acesso a bens e serviços por meio de um simples toque (e-commerce) e a cada vez maior eficiência e celeridade (dos processadores, dos processos logísticos, dos veículos etc.) têm subtraído a capacidade individual de suportar a falta.
De par com tudo isso, cada vez mais comuns são os transtornos em crianças, desde os déficits de atenção à ampliação do espectro autista, o desinteresse sexual observado em adolescentes e jovens, as situações dramáticas de depressão juvenil, não raro culminando em suicídio. Igualmente, são frequentes as notícias de violência marcada pela exacerbação do ódio entre pessoas de uma mesma família. Por exemplo, quem não fica estarrecido com o caso paradigmático do menino que matou a mãe e irmão, em Patos (PB), tão somente porque lhe foi negado o uso do aparelho de celular?[2].
Não se esqueça a potencialidade humana para atos estúpidos contra si e os outros. A literatura universal, particularmente a russa, é pródiga em ilustrações sobre a capacidade de o ser humano cometer atos tresloucados, ainda que lhe venham a causar grande sofrimento depois, como podem ser lidos o suicídio de Volódia, de Tchekhov, e o parricídio em Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski. Mas, no mundo real atual, as ocorrências, de tão frequentes quanto extremas, vêm amenizando a perplexidade. A incapacidade de suportar as adversidades da existência e uma suposta obrigatoriedade da felicidade e do prazer constantes se estabeleceram no topo da hierarquia, suplantando propósitos e valores.
Jean-Pierre Lebrun, em sua obra Um mundo sem limites (2004), adverte para a necessidade de se pensar sobre as consequências da substituição da temporalidade histórica, caracterizada pela sucessão de passado-presente-futuro, pela temporalidade puramente operacional. Segundo o autor, “os doentes atualmente não aguentam mais o tempo da cicatrização de uma ferida, ou o da dor que acompanha a angina; é preciso suprimir isso sem demora, é preciso curá-los disso imediatamente!” (LEBRUN, 2004, p. 112). Eis que nos deparamos com outro aspecto da atualidade, que é a medicamentalização como meio de supressão instantânea do sofrimento. Ao que parece, a experiência humana passou a se caracterizar pela fugacidade e, de conseguinte, pela superficialidade, o que vem convergindo para os episódios marcadamente trágicos que alimentam os noticiários e suas páginas eletrônicas.
A digestão é necessária não apenas ao alimento, mas também à experiência, para a apropriação permanente dos seus elementos – alegria, prazer, tristeza, dor, medo, vitória, informação etc. –, viabilizando o contato consigo, com os outros e com o mundo. Somente esse processo, que requer tempo e, portanto, não condiz com a instantaneidade dos dias atuais, torna possível percorrer um caminho que não é rodeado apenas de flores, mas também pela sinuosidade das escolhas e dos horizontes delas descortinados, isto é, o próprio viver.
É pressuposto para a existência equilibrada a preservação do direito à convivência vincular humana, pautada em “laços de sentimento”, na expressão de Freud em Psicologia das massas e análise do eu (1921), e em virtudes que confiram ao sujeito a capacidade de suportar as dores e de se manter integrado à cultura, como espaço de cura e sobrevivência. A propósito, Freud também anotou, citando Schiller em Mal-estar na civilização (1930), que a fome e o amor sustentam a máquina do mundo.
Não se está a defender o retrocesso ou a renúncia ao conforto material proporcionado pelo progresso econômico e pelas conquistas tecnológicas. O que se alerta é para a necessidade de se pensar atentamente para os seus desdobramentos, notadamente no quesito eliminação do desejo, decorrente da abundância e disponibilidade do que antes se predominava pela falta. Marcel Proust, em sua monumental obra Em busca do tempo perdido (1913), fala da angústia do narrador do romance diante da ausência da mãe a cada noite. Não teria esse sofrimento contribuído para a sua compreensão acerca da importância do amor?
As transformações cada vez mais rápidas e profundas, dando ensejo inclusive à cogitação de uma fase chamada “pós-humana”, reclamam a atenção para os dramas os sofrimentos que vêm como desdobramento de tais fenômenos, os quais são dores, eminentemente, humanas! É provável que a superação de inúmeras dificuldades, antes tidas por intransponíveis, viabilizada pelo desenvolvimento técnico-científico e pela revolução cibernética, esteja na origem das dificuldades psicoemocionais constatadas em casuística crescente, já em fases muito iniciais da vida da criança. Com efeito, a velocidade e a intensidade dos processos hodiernos alteram qualquer tecido psíquico em construção, interferindo na química fisiológica de toda sensualidade saudável possível.
Sem renunciar ao avanço tecnológico e às facilidades daí conquistadas, é fundamental que nos debrucemos sobre a questão da eliminação do desejo diante da satisfação instantânea proporcionada por um cenário de superabundância, e também sobre a compatibilização de tal cenário com a saúde mental, sob pena de não podermos desfrutar da existência em condições psicológicas e emocionais igualmente evoluídas. Afinal, a disponibilidade material não é suficiente para preencher os vazios da existência.
É nesse sentido que ciência e tecnologia, assim como as conquistas no campo da informatização dos processos, devem ser concebidas como produto da cultura e, portanto, em função e a serviço da existência humana digna e saudável. A civilização é o substrato que permite essa existência e, ao mesmo tempo, o ambiente mediador entre a experiência humana e os inúmeros fatores que a determinam ou influenciam. É necessário atentar para o sujeito em sua globalidade, dotado de uma dimensão psicoemocional com limitações, exigências e um tempo próprio, em benefício de quem se deve buscar os avanços tecnológicos, não o inverso.
Referências
FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu. In: Obras completas, v. 15, trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: Obras completas, v. 18, trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
LEBRUN, Jean-Pierre. Um mundo sem limites. Rio Comprido-RJ: Cia. de Freud, 2004.
LEMBKE, Anna. Nação dopamina. Trad. Elisa Nazarian. São Paulo: Vestígio, 2022.
MASARO, Leonardo. Cibernética: ciência e técnica. 2010. Dissertação (Mestrado) – Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP. Disponível em:<https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/410/o/Disserta%C3%A7%C3%A3o_-_Cibernetica__Ciencia_e_T%C3%A9cnica.pdf> Acesso em: 12 jul. 2022
PROUST, Marcel. No caminho de Swann. In: Em busca do tempo perdido, v. 1, trad. Fernando Py. São Paulo: Globo, 2003.
[1] Mestra em Filosofia (Unifesp). E-mail: unifesp.amanda@gmail.com
[2]“Menino de 13 anos confessa que matou a mãe e o irmão porque foi proibido de usar o celular”. G1 PB, 2022, Disponível em:<https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2022/03/20/menino-de-13-anos-confessa-que-matou-a-mae-e-o-irmao-porque-foi-proibido-de-usar-o-celular.ghtml> Acesso em: 7 jul. 2022
O artigo é o sexto da quarta edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos publicados:
- Atenção! A sociedade contemporânea e a cultura do déficit de atenção, de Rafael Lopes Batista, Paula Mariana Rech e Marsiel Pacífico, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/06/atencao-a-sociedade-contemporanea-e-a-cultura-do-deficit-de-atencao/
- A gratidão pela transmissão: uma homenagem ao professor Marcelo Fabri, de Vítor Hugo dos Reis Costa, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/13/a-gratidao-pela-transmissao-um-agradecimento-ao-professor-marcelo-fabri/.
- Epistemologia e política: relação necessária e (impossível)?, de Alberto Mesaque Martins e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/08/20/epistemologia-e-politica-relacao-necessaria-e-impossivel/.
- Há filosofia nos recortes das redes sociais?, de Guilherme Baís do Valle Pereira e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/08/27/ha-filosofia-nos-recortes-das-redes-sociais/.
- Sou uma fraude? Conhecendo o Fenômeno do Impostor, de Renata Tereza dos Passos Costa, Weiny César Freitas Pinto e Ana Karla Silva Soares, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/03/sou-uma-fraude-conhecendo-o-fenomeno-do-impostor/.