[Coautor: Pedro H. C. Silva[1]]
Sabemos que a tirania é um tema clássico para a discussão dos filósofos, antropólogos, historiadores e ativistas. Uma boa fonte de leitura para a análise desse tema é o Discurso da Servidão Voluntária (DSV, 1552), de autoria do jovem francês Étienne de La Boétie (1530-1563). La Boétie foi um aristocrata francês e amigo de Montaigne, que, aos 18 anos, escreveu o DSV, texto que circulou amplamente como um panfleto militante.
Há um detalhe paradigmático no que se refere ao modo como La Boétie trata desse tema, pois analisa a tirania através da perspectiva dos tiranizados. No entanto, o autor rejeita hipóteses mais corriqueiras acerca dos motivos da submissão, tais como o amor, o medo, a opressão pelas armas ou o encanto pelo tirano. Ao descartar essas hipóteses, La Boétie vai mais a fundo e identifica nos tiranizados uma escolha em servir ao tirano, que dá estrutura à tirania. Nesse sentido, afirma que o dominador é apenas um homenzinho, alguém que, em sua pequenez, não representa o tamanho que lhe é atribuído pelos povos. Contudo, os povos que fazem do tirano um gigante comportam-se assim quando recusam a liberdade e decidem servir-lhe. Portanto, no fundo, os povos desejam ser tiranizados e, por causa desse desejo, eles chegam, inclusive, a degolarem a si mesmos.
Partimos da compreensão de que há uma relação intrínseca entre tirania e o abandono voluntário da liberdade, de modo que o infortúnio da tirania não está no poder do dominador e sim no próprio desejo de servir – esse desejo é o verdadeiro tirano. Retomemos o raciocínio de La Boétie em DSV no que diz respeito ao desejo de servir, tendo em vista que, ao identificar esse desejo, também apresenta as razões que motivam a recusa da liberdade. Como vemos, são três razões: o hábito, a covardia e a participação na tirania.
Para debruçar-se sobre o problema da servidão voluntária, primeiramente La Boétie apresenta uma oposição a toda forma de dominação. É isso que fica explícito na citação que faz de Homero e que dá início ao DSV: “Em ter vários senhores nenhum bem sei, que um seja o senhor, e que um só seja o rei. Dizia Ulisses em Homero, falando em público […]’’ (LA BOÉTIE, 1982, p. 11). Como podemos ver, no entender de La Boétie, nenhum poder é bom, seja ele de vários, seja de um. Nesse sentido, a sujeição é definida como algo inominável, um infortúnio ou vício infeliz, pois a obediência é compreendida como um certo tipo de escolha em servir. La Boétie mostra que essa escolha tem consequências, uma vez que, ao nos submetermos a um senhor, estamos dando as condições para que o dominador nos maltrate para manter-se no poder, ou melhor, jamais poderemos nos certificar de que esse dominador irá agir de maneira boa. Assim, o autor procura encontrar a gênese desse desejo pela submissão em alguns povos, tendo em vista que eles não são governados e sim tiranizados.
Para buscar essa gênese, o autor descarta as suposições mais corriqueiras como: força maior, feitiçaria, encanto, temor, amor ou opressão pelas armas. Com isso, La Boétie verifica que o dominador muitas vezes não passa de um homenzinho e que seu poder é retroalimentado pelo desejo dos súditos em servir. Quanto mais o senhor pede, mais o escravizado deve dar. Sendo assim, o caminho contrário é possível: caso o súdito nada der, nada o senhor terá; numa relação econômica, o senhor depende de seus súditos e tudo perde sem eles; por outro lado, os súditos nada perdem sem o senhor além de suas malfeitorias. Segue-se, então, certa anatomia do poder, esse tirano inominável. O corpo do tirano é aquilo que os tiranizados lhe dão: seus milhares de olhos, ouvidos, mãos, pés e seu gigantesco poder são apenas aquilo que os súditos atribuem ao dominador. No final das contas, tirânico é o desejo de servir.
Aquele que vos domina tanto só tem dois olhos, só tem duas mãos, só tem um corpo, e não tem outra coisa que o que tem o menor homem do grande e infinito número de vossas cidades, senão a vantagem que lhe dais para destruir-vos. De onde tirou tantos olhos com os quais vos espia, se não os colocais a serviço dele? Como tem tantas mãos para golpear-vos, se não as toma de vós? Os pés com que espezinha as vossas cidades, de onde lhe vêm senão dos vossos? Como ele tem algum poder sobre vós, senão por vós? Como ousaria atacar-vos se não estivesse conivente convosco? Que poderia fazer-vos se não fôsseis receptadores do ladrão que vos pilha, cúmplices do assassino que vos mata, e traidores de vós mesmos? (LA BOÉTIE,1982, p. 16).
Porém, La Boétie não concordaria em dizer que esse pacto coletivo pela servidão seja o destino natural da humanidade; na verdade, a servidão é um mau encontro, um esquecimento da condição natural humana. A razão disso estaria no caráter desnaturalizado da servidão. La Boétie compreende que a natureza nos fez de tal modo que nos permite ser livres, fraternos e companheiros uns dos outros. A natureza forneceu tanto as diferenças quanto as semelhanças humanas, além da voz e da linguagem, predispondo o companheirismo entre os humanos. Além disso, esse caráter natural da liberdade também é observado nos animais, visto que todos eles protestam quando são domados ou presos. Desse modo, La Boétie deixa algo bem claro a nós: a opressão é uma invenção humana.
Quanto às causas do esquecimento da liberdade em certos povos, La Boétie identifica três motivos. O primeiro deles é o costume – por ele, os povos foram subjugados geração após geração, de modo que se esqueceram da liberdade. O segundo aspecto é a covardia – essa condição de passividade é o que La Boétie identifica de diferente entre os humanos subjugados e os livres. Tal covardia é conhecida pelo tirano e pretendida por ele. E o terceiro é o desejo de ser tirano, um ponto importante em nossa discussão, pois, no fundo desse ímpeto para a obediência, reside uma vontade de participar da tirania. Portanto, aquele que se submete à tirania em parte esqueceu-se de sua liberdade pelo costume. Com isso, acovardou-se diante da liberdade. O resultado foi um desejo tão grande pela tirania, que, além de sustentá-la, visa por fim tornar-se o próprio tirano.
Com a leitura de Étienne de La Boétie, podemos compreender que o problema da tirania pressupõe alguém que se posicione como tiranizado. Esse posicionamento não ocorre de outro modo senão por um desejo de servir. Esse desejo de servir é construído no tempo pelo costume, pela covardia e, sobretudo, pelo desejo de tiranizar. Podemos nos arriscar a extrair disso dois aspectos. Primeiramente, a força do tirano nutre-se da força que os oprimidos lhe dão, de tal modo que o tirano é o desejo de servir. Mas, em segundo lugar, se for assim, embora a força do tirano pareça ser gigantesca, a verdadeira força gigantesca é a dos oprimidos.
[Revisão de Natasha Garcia e Guilherme Baís. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
CHAUÍ, Marilena. Contra a servidão voluntária. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
LA BOÉTIE, Étienne De. Discurso da Servidão Voluntária. Tradução: Laymert Garcia dos Santos. Comentários: Claude Lefort. Pierre Clastres e Marilena Chauí. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982. [Texto estabelecido por Pierre Léonard]
[1] Graduando em Filosofia na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: pedro.h.c.silva@ufms.br
O artigo é o 15º texto da sexta edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Um enredo entre arte e filosofia, entrevista de Natasha Garcia com o filósofo e artista Thiago Moura, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/08/26/um-enredo-entre-arte-e-filosofia/.
- A situação da filosofia no mundo contemporâneo, segundo Badiou, de Luiggi de Barros Cestari e Pedro H. C. Silva, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/02/__trashed/.
- Amor, na falta e como negatividade, de Gabriel Pinheiro e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/09/amor-na-falta-e-como-negatividade/
- A filosofia experimental e a teologia na gênese da química moderna, de Lucas Mateus Barreiro Goes, David Monteiro de Souza Júnior e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/16/a-filosofia-experimental-e-a-teologia-na-genese-da-quimica-moderna/.
- O deslocamento da contemporaneidade, de Davi Molina e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/09/23/o-deslocamento-da-contemporaneidade/.
- Freud explica a influência da psicanálise no Brasil?, de Camila Polese de Oliveira, Lucas Giovani Novato Hernandez e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/30/freud-explica-a-influencia-da-psicanalise-no-brasil/.
- A marcha da filosofia e o contemporâneo, de Raphael Vicente da Rosa, Vinicius de Matos Meneguzzi e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/07/a-marcha-da-filosofia-e-o-contemporaneo/.
- Filosofia da psicanálise: um efeito da interlocução entre a filosofia e a psicanálise, de Cecília Castro Gomes e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/14/filosofia-da-psicanalise-um-efeito-da-interlocucao-entre-a-filosofia-e-a-psicanalise/.
- Reflexão sobre o romantismo na atualidade, Maria Clara de Freitas Barcelos e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/21/reflexao-sobre-o-romantismo-na-atualidade/.
- Afinal, o que é essa tal de psicanálise?, de Bruno Marques Ibanes e Weiny César de Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/28/afinal-o-que-e-essa-tal-de-psicanalise/
- A participação feminina na filosofia brasileira da psicanálise, de Maria Eduarda Rodrigues da Silva e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/04/a-participacao-feminina-na-filosofia-brasileira-da-psicanalise/.
- Repensar a pesquisa e a pós-graduação brasileiras, de Rafael Lopes Batista, Alberto Mesaque Martins e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/11/repensar-a-pesquisa-e-a-pos-graduacao-brasileiras/.
- Hip-hop, breaking e a filosofia, de Bergkamp Pereira Magalhães e Alberto Mesaque Martins, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/18/hip-hop-breaking-e-a-filosofia/.
- O romance familiar mitológico de Otto Rank, de Ana Tércia Rosa Alves e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/25/o-romance-familiar-mitologico-de-otto-rank/.