Existe um vídeo no YouTube em que o poeta e tradutor Haroldo de Campos relata seu encontro com João Guimarães Rosa em Nova York, por ocasião do Congresso Internacional do Pen Club, em 1966. Eles tiveram uma breve conversa que Campos descreve como estranha.
No papo entre os dois, ao comentar seu processo de criação, Rosa teria dito ao interlocutor: “Quando me vem o texto, fico nu, rolo no chão, luto com o demo de madrugada no meu escritório, e depois, naquele impulso, escrevo.” Imagine a cena.
Ainda na atmosfera do espanto, Campos brinca, dizendo: “Realmente, um pouco de Riobaldo ele tem, um pouco dessa onça [antropomórfica, devoradora de homens, referindo-se ao conto “Meu tio o Iauaretê”, que só seria publicado após a morte do autor, que ocorreu em 1967] ele tem (…), porque ele é uma antropofagia e um canibalismo generalizados, em termos de linguagem. Ele toma o bem dele onde ele encontra.”
Médico e diplomata, com posto de cônsul na embaixada de Berlim, Rosa sabia atender as pessoas e conviver socialmente, sabia estabelecer políticas e relações. Ou seja, não era um lunático sem noção, mas aquela estranheza mística, que ele foi capaz de expressar para outro escritor, é a mesma que está posta em sua obra.
O mundo dele é fusão inefável desse trânsito entre o claro e o enigma, entre o real e “um plano outro que não o real”, transcendente, metafísico, fantástico. Podemos entender um pouco desses mistérios e encantamentos da vida e da criação do autor mineiro num livro interessantíssimo, que saiu no período da pandemia, e parece que poucos notamos, afundados que estávamos nas nossas inquietações e dores.
Estou falando de Rosa e Rónai: o universo de Guimarães Rosa e Paulo Rónai, seu maior decifrador (Bazar do Tempo, 2020), com todos os textos que o escritor e tradutor húngaro, radicado no Brasil, escreveu sobre o amigo e autor.
O livro traz 29 textos que passeiam por toda a ficção de Guimarães Rosa, desde Sagarana a Ave-palavra (esta publicada postumamente em 1970, precedida da primeira publicação póstuma, Estas estórias, de 1969). Nele, Rónai cita trecho de uma carta do autor de Grande sertão: veredas enviada a seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason, em que diz:
“Todos os meus livros são simples tentativas de rodear e devassar um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa movente impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, que é chamada ‘realidade’, que é a gente mesmo, o mundo, a vida.”
Leitor ideal
A vida de Rosa é representativa de uma subjetividade interessante. Ele era um homem humanamente diferente, uma rara concepção de gente. Embora Rónai fale mais da obra, em várias passagens ele dá pinceladas sobre a personalidade do escritor mineiro.
É particularmente tocante saber que um homem da envergadura intelectual dele, sofisticado, culto num nível que poucos foram ou são, se misturava com o povo, não de modo hipócrita para tirar proveito da riqueza simbólica da gente do sertão. Pelo contrário, garimpou os gestos, pensamento, linguagem e paisagem dessa cultura imaterial e contribuiu para sua fixação no imaginário social do Brasil profundo.
“O diplomata impecável, o pensador erudito, o escritor genial, sentia-se realmente à vontade no meio desse povo interiorano, marginal, esquecido, em comunhão constante com a terra e com os bichos; ele se sentia realizado quando, em férias, podia misturar-se à vaqueirama e acompanhar por semanas a lenta marcha de uma boiada pelo sertão”, diz Ronái.
Da mesma forma que lia livros em várias línguas, Rosa lia a alma do povo sertanejo. Ele “bebia saber em todas as fontes”. E depois de ingerido e digerido tudo, recriava o mundo às feições de um universo ambiguamente do sertanejo e da singularidade de sua própria mente criativa, de sua sensibilidade universal, por meio da alquimia que realizava com a linguagem.
Segundo Rónai, “ele nos revelou outro país, imutável, intemporal, uma população que só aparentemente é nossa contemporânea, mas gravita em volta de mitologias ancestrais, em obediência a códigos atávicos sem por isso viver com menos intensidade os grandes problemas do homem”.
O bom do livro de Rónai, organizado por Ana Cecilia Impellizieri Martins e Zsuzsanna Spiry, é essa possibilidade de vermos a unidade de seu pensamento sobre Rosa, a partir de ensaios críticos e resenhas publicadas em jornais e revistas por ocasião dos lançamentos ou de aulas ministradas sobre o autor.
As edições posteriores da obra de Rosa integraram esses textos nos respectivos volumes, mas vê-los reunidos num único livro nos dá a medida exata do senso estético de Rónai ao se debruçar sobre uma prosa tão enigmática e ao mesmo tempo tão poética, encantadora e cativante.
No prefácio, Samuel Titan Jr. diz que, além de amigo, Rónai era o leitor ideal de Rosa. E o mineiro era grato ao húngaro. Nas cartas trocadas entre os dois, há várias passagens que expressam essa gratidão. As duas epígrafes confirmam isso.
“Saiu a terceira edição do nosso Primeiras estórias, e lendo-o de novo, impresso, exultei mais ainda com seu estudo, poderoso. Minha gratidão é imensa”, diz Rosa a Rónai. Em outro momento, Rosa comenta: “O que você me escreveu, a respeito de ‘Campo geral’, comove-me; sério. Grata está a minha alma.”
Rónai chegara aqui em 1941, aos 34 anos, fugindo dos nazistas que já haviam alcançado sua cidade natal, Budapeste. Filho de um livreiro, estava começando sua carreira acadêmica, com doutorado sobre Honoré de Balzac, cuja obra completa ele ajudaria a organizar e publicar no Brasil pela Editora Globo (Biblioteca Azul).
Assim como Rosa, Rónai era apaixonado por línguas, estudou dezenas delas, sabia falar português antes de chegar aqui, e, chegando cá, mergulhou nos estudos da língua de Rosa e Machado de um jeito que passou não só a dominá-la com maestria como também foi capaz de criar seu próprio estilo.
“O leitor onívoro, o filólogo formado na escola da estilística, o literato poliglota que um dia resolveu aprender português, o judeu cosmopolita e fugitivo – todas as facetas de Rónai confluem e contribuem para essa nova persona” de crítico da literatura brasileira, amigo e leitor ideal de Rosa.
Na força que unia os dois, pelo ideal estético, pelos interesses em comum, “havia uma confluência fundamental no que diz respeito às potências da linguagem e da imaginação mitopoética”, diz Titan Jr.. Daí os escritos de Rónai serem tão importantes na fortuna crítica de Rosa, que conta também com outros grandes leitores no Brasil e no exterior.
Sagarana
Como todo leitor sabe, a coletânea de novelas Sagarana, pronto desde 1938, foi o primeiro livro de Rosa publicado (1946). Mas seu primeiro livro de fato foi um volume de poesia, Magma.
Com 64 poemas, Magma havia sido premiado pela Academia Brasileira de Letras, em 1936, mas permaneceu inédito até 1997, cinco anos após a morte do húngaro. Por isso, não há crítica formal de Rónai sobre ele, apenas comentários esparsos em alguns textos.
Segundo Rónai, em Sagarana (como em todas as narrativas subsequentes), Rosa traz características do regionalismo (“costumes, tradições e superstições locais, o acúmulo de palavras, modismos e construções dialetais, a abundância da documentação folclórica e linguística”) numa obra de conteúdo universal e humano, manejando uma distinta capacidade de narrar, com maleabilidade, tensão trágica e ironia fina, “entre o humor e o cinismo”.
Corpo, sertão: veredas
O autor mineiro tinha estreado em grande estilo na literatura brasileira, e demoraria dez anos para publicar um novo trabalho, que só veio em 1956. Aliás, vieram. Foi uma torrente de histórias.
Em janeiro de 1956, Rosa publicou Corpo de baile (822 páginas, 2 vols., que em 1964 viria a ser desmembrado em três – Manuelzão e Miguilim; No Urubuquaquá, no Pinhém; Noites do Sertão). Quatro meses depois, veio Grande sertão: veredas, um espanto dentro do espanto.
O leitor que se encantou com Sagarana, viu-se envolvido numa tempestade estética muito maior em Corpo de baile, em que abismos foram inventados para os corpos mais vulneráveis da parte mais distante da sociedade.
“Crianças, loucos, mendigos, cantadores, prostitutas, capangas, vaqueiros”, protagonizam as novelas de Corpo de baile. São pessoas marginalizadas, de um jeito ou de outro, “imperfeitamente absorvidas pelo convívio social ou nada tocadas por ele”, cujos corpos e vivências, muitas vezes, parelham aos de gado e outros animais, como se todos fossem bichos e todos tivessem alma, ou o contrário, puxando um raciocínio do tipo “bicho também é gente”.
Do ponto de vista formal, Corpo de baile é uma revolução nos moldes da ficção brasileira, “uma estonteante experimentação criadora” que marcaria para sempre os procedimentos de quem ousa falar do sertão e do Brasil profundo.
Rosa pegou os grãos da linguagem e ergueu com eles um universo inteiro com a paisagem e o povo sertanejos, fazendo acabamentos com onomatopeias (“O mato – vozinha mansa – aeiouava.”), troca de prefixos (“pedra escorregosa”) e outros recursos – às vezes assaz arbitrários, fundadores de novos paradigmas poéticos – da língua (zebus “abanando as enormes orelhas sem cabimento”).
Mal o leitor assimilou o espanto do fenômeno Corpo de baile, viu ser jogado sobre a mesa aquele que talvez seja o maior romance da história da literatura em língua portuguesa, Grande sertão: veredas. É inesgotável em sua perscrutação, mas as palavras de Rónai sobre ele são importantes para sua diluição.
Grande sertão: veredas é um redemoinho sublime de linguagem, e um tour de force como trama e como objeto de leitura. Quem consegue atravessá-lo reconhece, em sua travessia, que não se sai do outro lado sendo o mesmo tipo de leitor, e nunca chega ao ponto que mirou na outra margem.
O autor força as extremidades linguísticas e, de quebra, põe no jugo alguns vocábulos de outras línguas, recarregando-os semanticamente (“aqueles esmerados esmartes olhos”). “A língua não lhe bastava em sua riqueza estática: ele a amolgava, forçava-a, torcia-a, submetia-a a experiências as mais audazes”, diz seu leitor ideal.
Mire e veja
Ao elogiar a virtuosidade linguístico-poética do homem de Cordisburgo, o homem de Budapeste aproxima-o do homem de Dublin. Rosa “submete o idioma a uma atomização radical, da qual só encontraríamos precedentes em Joyce”.
Interessante. A crítica contemporânea de Rosa teria dito que ele fora influenciado por James Joyce. E aí, lhe perguntaram se havia lido Ulysses. “Só umas dez páginas”, ele teria respondido. “Mas é o bastante para a influência”, disseram.
Em todo caso, como o mundo gira, e literatura é vingança, seja lá o que isso signifique, eis que o novo tradutor de Ulysses para a língua portuguesa, Caetano Galindo, usou como solução para uma curta frase do romance irlandês (“look you”) uma curta frase de Grande sertão: veredas (“mire e veja”), cacoete verbal de Riobaldo.
Para quem quiser conferir, a frase está na página 616 (Penguin/Companhia, 2012). Ou seja, agora dá pra dizer, dentro de um complexo kafkiano, que, pelo menos em português, Rosa influenciou Joyce.
Descobertas
Voltando a Rosa e Rónai, este é um tipo agradável de leitura. Sobre a magnum opus de Rosa, seu maior decifrador disse: “Sai-se do livro com a impressão de se ter participado não só da vida aventurosa do herói, mas também da alegria criadora do autor.”
De certo modo, o leitor pode aplicar a mesma observação à antologia crítica de Rónai sobre o autor de “Pirlimpsiquice”. Quando mergulhar na prosa vertiginosa da ficção de Rosa, mire e veja o que Rónai tenha a dizer, e sinta-se um decifrador de enigmas, um apreciador de poesia, um entendedor de filosofias, um sentinte de afetos.