Antes de chegar ao último piso, ouvia a canção que Ella Fitzgerald fazia flutuar com a sua voz grave e aveludada, andar por andar, degrau por degrau – que lembrava ratinhos felizes e saltitantes, repetindo com entusiasmo as notas uma por uma, como se estivessem numa animação gráfica com Fred Astaire.
Enquanto imaginava essas besteiras, tropeçava na voz de Fitzgerald e espumava com a informação que acabara de receber – a raiva que me consumia só fazia acelerar o ritmo dos meus passos.
Por fim, meio ofegante, cheguei à porta cujo número indicava que eu estava onde era esperado. A minha noite começava ali.
Toquei a campainha.
A voz de Ella caiu alguns decibéis. Em seguida, ouvi um rumor aproximando-se da porta.
A chave girou na fechadura e, depois de um estalido, a porta entreabriu-se. Um rosto acabrunhado insinuou-se na fresta. Antes de levantar os olhos para me encarar, uma voz rouca disse:
“Ah, é você, o amigo das horas difíceis, o que chega com as sombras…”
Quando fechou a porta – o mesmo estalido de metal. Quase à vontade em sua sala, perguntei, fingindo naturalidade:
“O que você tem no bar?”
Ela respondeu, desenhando um gesto no ar, que significava a seguinte frase:
“A mesma garrafa.”
Antes que eu respondesse com outro gracejo, virou-se e dirigiu-se ao aparelho.
Ella Fitzgerald voltou ao panteão.
Depois, foi até a cozinha e trouxe copos e uma garrafa de Laphroaig.
Eu me lembrava daquela garrafa por causa da data que anotei no rótulo: nós quase a entornamos em Montparnasse. Na ocasião em que foi aberta, estávamos em frente à igreja, sentados no degrau e tínhamos alguns assuntos para destrinchar.
Agora, enquanto sorvia a bebida, ela disse que, além das privações, a humilhação tinha sido a pior experiência de sua vida.
Na sala de luz indireta e móveis de bom gosto, ela me contou histórias tristes de seu país. Como que para sepultar a estranha realidade que se entrelaçava à música, o meu copo parecia insaciável. Na quarta dose, eu disse:
“Aprecio muito o malte, as suas palavras, a sua estima, mas vim aqui por outro motivo.”
“Então você não veio por minha causa?”
Eu tive de mentir, embora o fizesse a contragosto:
“É claro que vim por causa do seu sofrimento, mas preciso agora saber de uma coisa.”
Eu só queria o nome, o endereço e a ficha do canalha que a torturara e a estuprara alguns dias antes. Apesar de meu nome não ser Lew Archer, era óbvio que tinha agora pela frente um serviço barra-pesada. Um osso duro de roer.
Como eu perguntara, ela teve de responder. Mas qual foi o idiota que disse que nesta vida as coisas são fáceis? Despedi-me dela e fui em direção ao metrô. Ainda fiquei muito tempo com o timbre de Ella na cabeça e o eco de uma voz implorando para ser cuidadoso, para não me machucar e continuar vivo.
“Eu preciso de você” – ouvi, antes de ela fechar a porta.
Enquanto descia as escadas, escutei pela terceira vez o estalido.
Depois de cansativas conexões, cheguei enfim à estação onde devia saltar. Conferi o endereço. Ajeitei debaixo da jaqueta a faca e um berro de cinco tiros – armas boas, leves, rápidas e letais. Dos dois lados, o esquerdo e o direito, o meu potencial de destruição e a minha raiva eram compatíveis: só precisava achar a pessoa com aquele nome e o seu covil.
Eu estava em Seine-Saint-Denis, um subúrbio de Paris, onde há pouco tempo os conflitos urbanos adquiriram sentido político – a revolta dos filhos de imigrantes que abriram a tampa da caldeira, segundo o velho figurino francês: queimando, arrebentando e fazendo barricadas.
Esses caras incendiaram por ódio e savoir-faire mais de uma centena de carros. Por serem desempregados, eles tinham mesmo tempo de sobra e alguns – os marcados pela polícia – foram logo retirados de cena.
Como estrangeiro, apreciava todas aquelas ações, mas não gostaria de participar de nenhuma delas no momento: a minha bronca era com um gângster babaca, com quem tinha um acerto de contas. Nisso tudo, enquanto andava ao lado das carcaças de automóveis, de ferros retorcidos e de sinais de batalha, assaltava-me uma curiosidade infantil: os Renaults foram mais carbonizados do que os Citroëns?
Se havia uma ferocidade ali, pulsante e inesgotável naqueles destroços, ela não se comparava em nada com a minha. Passei ao largo das ruas conflagradas e finalmente achei um táxi. Disse-lhe o endereço e, em seguida, o motorista fez a piada, parece que inevitável:
“Espero receber a corrida antes que você parta deste vale de lágrimas, se o endereço for o mesmo que você me deu.”
Repeti o endereço, e ele reafirmou:
“Voilà! Você não sabe onde está colocando o seu traseiro!”
Naquele lugar, todos gostavam de fazer gracejos. Não era o primeiro que ouvia. Mas, antes de retornar, divertiu-se com as minhas perguntas.
“É tão diferente assim, essa boate?”
“Não, nada disso”, respondeu o taxista – e acrescentou:
“O seu problema chama-se Monsieur Plon, o cara que gosta de escalpos.”
Metade dos meus problemas estava agora resolvida: por fim, tinha como chegar ao endereço onde encontrar o tal do Plon, cujo nome, ironicamente, era o mesmo de uma grande editora francesa.
“E esse tal de Monsieur Plon vale um dólar furado”? – ri da minha pergunta.
“Mais do que isso, ele é o boss do bairro, das ruas, dos quarteirões e de muitas casas noturnas e prédios. Se conselho ainda vale alguma coisa, não queira negócios com ele. Você com certeza vai ser enrabado.”
Desde que chegara àquele subúrbio, tinha me deparado com um hábito que me incomodava: as pessoas davam-me conselhos em demasia.
Assim, ignorei todos eles e pedi ao motorista que me deixasse antes da boate, pois pretendia fazer um reconhecimento a pé. Quando cheguei ao local, não acreditei no que estava à minha frente: era a maior espelunca, tão porca e decadente que tive vontade de vomitar.
A sordidez não estava estampada apenas na fachada e no toldo imundo que se inclinava sobre a calçada – escancarava-se também nos tipos mal-encarados que impediam um bom moço de entrar no recinto. Como o meu humor só vinha piorando, resolvi enfrentar de vez aqueles mafiosos. Diante de todos eles, eu disse, com a mais fina educação:
“Boa noite, senhores! Eu vim tratar de negócios com o senhor Plon.”
O cara que estava à minha frente era uma espécie híbrida: até o ombro parecia humano; daí para baixo, contudo, era uma mistura de minotauro com Chapeuzinho Vermelho – maldade combinando com uma gota de delicadeza. Foi esse animal híbrido que perguntou, nervosinho:
“E daí? Não sabemos quem é você!”
Para afastar as nuvens pesadas de sua voz, tirei a minha carteirinha do Rotary e a entreguei.
Ao seu lado, fechando o círculo, estavam os paspalhões de sempre, bandidinhos de meia-tigela com a sua indumentária manjada: topetes engomados, roupas justas, correntes grossas sobre o tórax exposto, jaquetas de couro. Como uma cena de filme B, aqueles imbecis tinham herdado de James Dean apenas a caricatura da rebeldia – o retrato da escrotidão.
O que estava com a minha carteirinha, depois de examiná-la dos dois lados, devolveu-a e grunhiu:
“Barra limpa. Deixa ele entrar. O chefe gosta de receber autoridades.”
Peguei o meu documento de volta e, encarando os palermas, guardei-o na carteira e segui adiante.
Além do mofo, que me causava alergia, a pocilga tinha uma pista de dança entre as mesas. Tudo, é claro, de mau gosto, como a fachada da entrada. Vi o balcão meio deserto e atravessei o salão. Antes de decidir-me, olhei para os lados e descobri uma mesa desocupada que me dava ampla visão do recinto. Dirigi-me a ela, sentei-me, tirei o maço de cigarros do bolso e acenei para o garçom, um gorducho careca com um avental encardido amarrado à cintura.
Enquanto bebericava o meu uísque, relaxei um pouco da tensão que vinha experimentando há algum tempo. Pela primeira vez, pude colocar as ideias em ordem. Quem eu queria matar mesmo? Quem era esse gângster na hierarquia dos bandidões da cidade? Se eu o matasse, como planejava, quais seriam as consequências? Por que me sentia a porra de um justiceiro?
E aí, entre essas perguntas, veio à minha lembrança a confissão que ela me fez quando estava em seu apartamento. Sem nenhum descuido, deixou cair o robe – e vi o seu corpo maltratado pelos cortes e pelas queimaduras, a dor e a depressão devorando-a. Abracei-a enquanto ela tremia e soluçava. Só muito tempo depois é que ela conseguiu falar:
“No meu país, uma mulher pode não valer muita coisa, mas os homens não a torturam por causa de um erro.”
As notas de uma cançoneta francesa na voz de Piaf retiraram-me daquele estupor de sentimentos revoltos e lembranças ruins. Chamei o garçom outra vez.
“Sou delegado do Rotary. Gostaria de ter o prazer de conversar com o senhor Plon”, falei, ao mesmo tempo em que lhe entregava a minha carteirinha.
Ele a examinou e disse em seguida, devolvendo-a:
“Espere aqui que vou verificar” – e desapareceu entre as mesas, arrastando a sua carcaça.
Eu sempre tive confiança no Rotary. Essa organização abre mesmo portas. Bendito o dia em que achei essa carteirinha numa estação de metrô.
Até ali, eu tinha um passe-partout para encontrar o misterioso e cruel Monsieur Plon.
Algum tempo depois, vi o garçom sair de uma porta camuflada. Apesar de estar disfarçando a passagem, revelou sem querer a escada que conduzia ao mezzanino. Em seguida, com um sorriso idiota, veio até a minha mesa.
“Dei o recado para o chefe. Ele mandou você esperar.”
Voltou depois para o seu balcão onde, de forma negligente, passou a polir copos colocados numa fila interminável.
Um dos bandidinhos da entrada apareceu de repente no salão com as pontas dos dedos enfiadas no cinto. Manjou o ambiente, examinando todos os lados e, contente com o que viu, fez um voleio e retornou ao seu posto na entrada. O garçom voltou à minha mesa.
“O chefe mandou subir.”
Ele me acompanhou até a entrada do mezzanino e fechou rapidamente a porta, enquanto eu subia os degraus. Entrei numa sala com aquários horizontais, estantes repletas de miniaturas de coruja e uma mesa de aço, atrás da qual um sujeito asqueroso levantou-se, com cara de réptil, vestindo uma calça larga presa por suspensórios. Num átimo, estendeu-me a mão e saudou-me – uma baba fina escorrendo no canto dos lábios:
“Bem-vindo, irmão rotaryano…”
E aí, antes que ele terminasse a frase, encaixei um cruzado que o devolveu em estado de convulsão à sua cadeira pomposa de couro marrom.
“Rotaryano uma ova! – eu sou o seu pior demônio!” – exclamei.
Aturdido, os olhos desfocados, surpreendido em seu antro, ele ficou sem respirar por alguns minutos, tempo suficiente para eu bloquear a porta. Eu queria, mais do que tudo, dizer vários impropérios ao idiota.
Após rodear a mesa e colocar a faca em seu pescoço, eu reduzi meio palmo do meu ódio para não degolá-lo de vez, mas não antes de cortá-lo pelo menos alguns centímetros.
Recuperando a consciência, Monsieur Plon perguntou-me:
“Quem é você?”
Eu respondi na base do escárnio e acho que afundei a faca mais um milímetro:
“Eu sou a mão que conduz os escrotos às fogueiras do inferno!”
Como eu não o tinha matado ainda, ele pôde ouvir de novo:
“Você é o filho da puta que torturou a minha amiga só porque ela cheirou um papelote. Eu trouxe um recado dela: ‘Que ele suplique até morrer.’”
Monsieur Plon estava nesse sufoco quando a porta foi arrombada, num enorme estrondo. Saquei o revólver e descarreguei os cinco tiros, mirando sem afobação. Por fim, rolei pelo tapete e me atirei pela janela. Com toda certeza, naquele instante, Monsieur Plon estava em maus lençóis, pois esqueci a faca em seu pescoço, enterrada até o cabo.
Algumas quadras depois, parei de correr. Como não consegui um táxi, andei, andei, até chegar a um parque de diversões, onde me misturei à multidão.
Ali estaria a salvo até decidir os meus próximos passos. Talvez voltasse para Marselha, talvez fosse para a Espanha, talvez procurasse uma mulher em Ruão, uma linda devota de Joana d’Arc. Eu tinha tempo para decidir, antes que os cães de caça saíssem à minha procura.
Para não ficar de um lado para o outro como um paspalho, procurei o estande de tiro ao alvo. Se existe uma coisa que aprendi na vida é que, depois de um serviço bem-acabado, um cristão deve divertir-se um pouco. Com os meus tiros certeiros, muitas criancinhas ganharam naquela noite bichos de pelúcia.