[Coautor: Flávio Amorim da Rocha[1]]
O assunto “educação sexual nas escolas” provoca incerteza, e até mesmo medo, em pessoas com pouca informação sobre o assunto, incluindo pais de jovens em idade escolar. Tratando-se de um tabu, a discussão, atualmente, está cercada por desinformação e falta de transparência, deixando de ser vista como uma questão de saúde das crianças e dos adolescentes no Brasil, tomando um viés político, aproximando-se do ideológico – como pode-se notar na fala de Nikolas Ferreira, presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados:
A educação sexual se dá em casa com os pais. O tema deve ser tratado na escola porque é um tema de biologia. Inclusive, se as pessoas se ativessem mais às questões biológicas, teriam menos discussões com relação a isso. (FERREIRA, 2024)
A perpetuação de falas semelhantes a essa, ditas publicamente por autoridades congressistas e em comissões que debatem o futuro da educação, exerce impacto que se estende para além do contexto político. Além disso, a partir de discursos nocivos, evidencia-se a fundamentação de tal pensamento: a ignorância como ferramenta de conservação da vulnerabilidade da população – com foco, principalmente, nos estudantes com acesso precarizado à educação. Este ensaio busca, então, desmistificar o discurso nocivo e desinformativo que trata da educação sexual negativamente, analisando-o a partir de seu conceito, da sua aplicação na amenização de diversos problemas e de sua importância na realidade dos estudantes.
De acordo com o Ministério da Saúde, no Brasil, entre 2015 a 2021, foram notificados 202.948 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. Para compreender o problema, é necessário reconhecer que, em grande parte dos casos, o agressor é familiarizado com a vítima, visto que, segundo os dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, veiculados pela TV Cultura, 75,9% dos registros de abuso ocorrem no ambiente domiciliar. Desse modo, supõe-se que o número real de casos não notificados seja ainda maior.
Aludindo a esses dados, no vídeo subintitulado Acreditem nas Crianças, da influenciadora Julia Tolezano, a “JoutJout”, abre-se o questionamento acerca do duradouro pensamento no imaginário popular: “Será que deveríamos estar mais preocupados com as crianças e os adolescentes fora ou dentro de casa?” (Tolezano, 2019). A propagação de uma narrativa violenta e agressiva que descreve o ato do abuso partindo de um indivíduo desconhecido passa a ser prejudicial quando dificulta a luta pela proteção dessas vítimas. Cria-se a ideia de que os mais vulneráveis só estão em segurança dentro de casa – mesmo que, na realidade, os casos que provem o contrário estejam crescendo exponencialmente. Então, de que forma é possível garantir os direitos das vítimas desde cedo e proporcionar um ambiente seguro para seus questionamentos?
Indubitavelmente, a escola tende a ser a rede de apoio principal capaz de atingir crianças e adolescentes de maneira pedagógica, direcionando o sentimento desses indivíduos a se desenvolverem de maneira saudável e consciente. Isto é, o ensino da sexualidade aborda uma gama de aspectos complexos do desenvolvimento individual e coletivo: emoções, afeto, gênero, autonomia e consentimento. E, assim, o conhecimento cria líderes responsáveis por suas próprias decisões ao reconhecerem os riscos de uma situação, capazes de denunciar uma possível violação de seus direitos e de seus conhecidos, dentro ou fora do contexto familiar.
No estudo “Pedagogia freireana como método de prevenção de doenças”, realizado com 10 jovens do sexo masculino por meio da prática de rodas de conversa, Beserra (2011) pontua que “a questão da precocidade está visível socialmente, declarada para todos como um problema de saúde pública e de intervenção direta”. A afirmação ocorre após muitos depoimentos dos participantes demonstrarem que eles têm o conhecimento básico de sexualidade e relacionamentos íntimos, porém não o suficiente para compreenderem seus riscos e responsabilidades consigo ou para com o outro. Os problemas relativos à privação do jovem de informações confiáveis sobre sexualidade e autoconhecimento são inúmeros: gravidez na adolescência, transmissão de ISTs e a propagação de comportamentos nocivos – tais como a desinformação entre seus colegas e a precocidade.
A educação sexual, portanto, trata de comportamentos sociais, emocionais e coletivos, sem dissociar, em nenhum momento, da notoriedade biológica, sendo uma estratégia de libertação e respeito às identidades dos jovens e seus direitos.
[Revisão de Flávio Amorim da Rocha. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
BESERRA, E. P. et al. Pedagogia freireana como método de prevenção de doenças. Ciência & Saúde Coletiva, v. 16, p. 1563–1570, 2011. Acesso em: 10 de março de 2024.
GAZETA DO POVO. Muitos se gabam pela educação do país que está entre as piores do mundo, diz Nikolas Ferreira. Disponível em:<https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/muitos-se-gabam-pela-educacao-do-pais-que-esta-entre-as-piores-do-mundo-diz-nikolas-ferreira/>. Acesso em: 10 de março de 2024.
Ministério da Saúde. Novo boletim epidemiológico aponta casos de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/maio/novo-boletim-epidemiologico-aponta-casos-de-violencia-sexual-contra-criancas-e-adolescentes-no-brasil#:~:text=De%20acordo%20com%20o%20boletim,per%C3%ADodo%20analisado%2C%20com%2035.196%20casos. Acesso em: 11 de março de 2024.
TOLEZANO, JoutJout Prazer. O vídeo mais importante deste canal. YouTube, 30 de jul. de 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OOZ-bHyWcTM&t=2554s. Acesso em: 20 de setembro de 2024.
TV Cultura. Violência infantil: Cerca de 80% dos casos acontecem no ambiente familiar. Disponível em: https://cultura.uol.com.br/noticias/50688_violencia-infantil-cerca-de-80-dos-casos-acontecem-no-ambiente-familiar.html. Acesso em: 11 de março de 2024.
[1] Professor de língua portuguesa, literatura e língua inglesa do IFMS, Campus Campo Grande. E-mail: flavio.rocha@ifms.edu.br
O artigo de hoje é o 20º texto da sétima edição do Projeto Ensaios, encerrando esta edição. O Projeto Ensaios é um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Efígie, de Paola Dias Bauce, disponível em: https://ermiracultura.com.br/2024/06/01/efigie/.
- “Van Filosofia”: um passeio pelas ruas de Campo Grande, de Herma Aafke Suijekerbuijk, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/08/van-filosofia-um-passeio-pelas-ruas-de-campo-grande/
- Superação e retorno à metafísica, de Cristian Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/15/superacao-e-retorno-a-metafisica/.
- Distopia do capital: o realismo capitalista e a devastação ambiental, de Anthony Franklin Prates Carvalho e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/22/distopia-do-capital-o-realismo-capitalista-e-a-devastacao-ambiental/
- Vínculo e psicanálise, de Caroline S. dos Santos Guedes, Weiny César Freitas Pinto e Natasha Garcia Coelho, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/29/vinculo-e-psicanalise/.
- Máquinas podem pensar como humanos?, de Kauê Barbosa de Oliveira Lopes e Jonathan Postaue Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/06/maquinas-podem-pensar-como-humanos/.
- Qual é o lugar da literatura?, de Maria Clara Barcelos e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/13/qual-e-o-lugar-da-literatura/.
- Ricoeur: leitor e intérprete de Freud, de Pedro H.C. Silva, Gabriel Santana e Paula Mariana Entrudo Rech, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/20/ricoeur-leitor-e-interprete-de-freud/.
- As profissões imperiais no Brasil: uma majestade inabalável, de Guilherme Giovane Ribeiro de Moraes e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/27/as-profissoes-imperiais-no-brasil-uma-majestade-inabalavel/.
- Freud convida Schopenhauer e Nietzsche, de Iolene Aparecida Seibel e Natasha Garcia Coelho, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/03/freud-convida-schopenhauer-e-nietzsche/.
- Psicogênese e educação infantil, de Giovana Santos, Lucas Aguiar e Amanda Malerba, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/10/psicogenese-e-educacao-infantil/.
- O devir do escritor filósofo, de João Pedro da Silva e Vitor Hugo dos Reis Costa, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/17/o-devir-do-escritor-filosofo/.
- Quem pode ser considerado “o pai” de uma teoria científica?, de Davi Barbosa Ferreira e Weiny César Freitas Pinto, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/24/quem-pode-ser-considerado-o-pai-de-uma-teoria-cientifica/.
- Nietzsche e a naturalização do conhecimento, de Francisco de Paula Santa de Jesus, Raphael Vicente de Souza e Pedro H. C. Silva, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/31/nietzsche-e-a-naturalizacao-do-conhecimento/.
- Estaríamos dependentes daquilo que nos adoece?, de Natália Nazário e Alberto Mesaque Martins, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/09/07/estariamos-dependentes-daquilo-que-nos-adoece/.
- Os sonhos e suas implicações filosóficas, de Jonathan Postaue Marques e Vitor Hugo dos Reis Costa, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/09/14/os-sonhos-e-suas-implicacoes-filosoficas/.
- Liberdade de expressão: a cultura do cancelamento, de autoria coletiva, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/09/21/liberdade-de-expressao-a-cultura-do-cancelamento/.
- A ideia do progresso como forma de desvalorização das ciências humanas, de Erick Pereira Calauro e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/09/28/a-ideia-do-progresso-como-forma-de-desvalorizacao-das-ciencias-humanas/.
- O acesso precoce às redes sociais e como isso afeta as crianças e pré-adolescentes, de Lara Pereira Santos e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/10/12/o-acesso-precoce-as-redes-sociais-e-como-isso-afeta-as-criancas-e-pre-adolescentes/.