“O povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe”
Gilberto Gil
Desde o início da nossa mais recente crise política penso ser central o engajamento maciço da classe média, em seus vários estratos, para a compreensão do que está se passando – principalmente desde quando os meios de comunicação corporativos (Grupo Globo, Grupo Abril, Folha de São Paulo e Estado de São Paulo, para mencionar os maiores, cujos proprietários estão entre as pessoas mais ricas do País) foram bem-sucedidos em seu deliberado propósito de canalizar os afetos dos protestos populares, catalisados pela demanda por qualidade no transporte público, para o difuso e controverso tema da corrupção.
As razões desse engajamento são várias – e muitas são surpreendentes, como a oposição aos direitos trabalhistas e previdenciários que atingem frontalmente a própria classe média –, mas uma que penso ser decisiva é a disputa acerca da natureza e do papel da universidade, na qual é nodular a forma do acesso a ela.
Sabemos que, a despeito das agudas dificuldades orçamentárias enfrentadas pelo sistema universitário federal, principalmente nos últimos três anos, o sistema foi praticamente duplicado nos últimos oito anos, após décadas de estagnação, e o acesso às universidades foi não apenas ampliado de modo correspondente, mas notavelmente universalizado, com a extinção generalizada do vestibular, o ingresso via exame nacional e a consolidação do sistema de cotas sociais, raciais e para egressos da escola pública (corretor da desigualdade dos pontos de partida no sistema geral de oportunidades). Desde a consolidação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) como via de acesso ao ensino superior público, a oposição foi sistemática, principalmente por parte dos proprietários de cursos preparatórios e outros envolvidos na indústria do vestibular, mas também por muitos que viam na restrição do acesso à universidade a oportunidade para aceder a estratos socioeconômicos superiores ou, principalmente, consolidar e legitimar posições na estratificação de classes.
É notório que os inúmeros conteúdos requeridos no exame vestibular tinham antes a ver com o que era possível acessar no ensino médio que com qualquer conhecimento necessário ao estudo universitário. Poucos eram os estudantes de escolas públicas que podiam sequer manter um contato mínimo com boa parte dos conteúdos requeridos, o que fazia do vestibular uma corrida desleal entre exangues, puros-sangue e raros azarões com sangue nos olhos. O Enem, em vez de focar na mera memorização de fórmulas e de regras, promoveu inicialmente uma ênfase maior na capacidade de compreensão, de interpretação de textos e de resolução de problemas, centrais à vida universitária e não apenas a ela. Foram muitas as pressões para que o exame chegasse a sua última edição mais parecido com o vestibular que jamais antes, mas isto ainda não se mostrou suficiente.
Nos últimos dias foi noticiada com êxtase incontido pelos meios de comunicação corporativos uma drástica reforma do ensino médio – drástica em mais de um sentido. Este êxtase já seria razão suficiente para suspeitar de que há mais em jogo que a anunciada preocupação com o pouco entusiasmo dos jovens por seus estudos, tributado ao fato de terem de aprender conteúdos pelos quais não estão interessados.
Se não estão interessados, para que fazê-los aceder ao que a humanidade vem construindo com maior ou menor qualidade ou êxito ao longo do tempo? Se Joãozinho não gosta de história ou de artes, para que submetê-lo a tal tormento? O seu interesse ou seu desinteresse não deveria ser razão suficiente para ele mesmo definir o que estudar ou não? O seu interesse ou seu desinteresse não é razão suficiente para reordenar e “flexibilizar” (palavra atualmente pavorosa, que passou a significar “reduzir” e “restringir”) o ensino médio? Que arbitrariedade seria oferecer um horizonte maior e mais plural para acomodar o interesse de Joãozinho! Não é possível que se possa acreditar, com maior ou menor boa-fé, que não haja mais em jogo – até porque, se for esta mesma a verdadeira razão a mover o ministro da Educação e seus asseclas, ele seguramente pode ser acusado de crime de responsabilidade, e movido de onde está.
Qualquer genitor ou educador responsável sabe que é simplesmente criminoso permitir que um jovem de 13 anos decida que seus anos futuros de formação serão do tamanho dos seus interesses do ensino fundamental e dos seus apetites adolescentes. É um crime de lesa-pátria a diretriz da formação nacional implicar a privação dos adolescentes e jovens da formação cultural básica, indispensável à constituição de uma identidade própria e ao pleno exercício da cidadania. Para falar consoante o vocabulário liberal: o interesse próprio deveria no mínimo poder ser um interesse esclarecido.
“É um crime de lesa-pátria a diretriz da formação nacional implicar a privação dos adolescentes e jovens da formação cultural básica”
Esta desnaturação do ensino médio promovida pelo governo putativo é ainda mais pavorosa que aquela levada a cabo pela ditadura militar no início dos anos 1970. Sabíamos que viveríamos tempos sombrios, mas talvez apenas o maior pessimista seria capaz de imaginar que o obscurantismo sairia à luz do dia para apequenar o mundo até o nível de sua própria estatura.
Nasci em uma cidade ainda hoje muito pequena no interior da Bahia, situada imediatamente aquém do início da Chapada Diamantina e inteiramente na caatinga do sertão baiano, onde estudei até o início do ensino médio. Por reviravoltas existenciais e acasos nem todos felizes, fui concluir o ensino médio em uma escola pública paulista, em Ribeirão Preto, na qual havia regularmente carência de professores e irregularmente aulas às sextas-feiras. Nem em minha cidade natal nem entre meus colegas paulistas a universidade era assunto ou horizonte.
Até onde sei, nos dois mundos, eu fui o único entre meus colegas de turma a ingressar na universidade após concluir o ensino médio, por um acaso muito mais feliz que infeliz. Fiz ainda assim um caminho com marcas da deserção e da privação, graduando-me em uma universidade particular e ingressando em uma universidade pública apenas nos níveis superiores de formação. Até hoje sempre penso em quantos méritos nas ciências, nas artes, nas técnicas e nas várias manifestações do saber e da excelência dessa coisa precária que é a existência humana foram sufocados no azar de terem nascido no ermo ou na pobreza.
Permito-me esse raro excurso em minha história pessoal comum a muitos porque julgo que não podemos compreender o futuro que nos é prometido como notável inovação sem ter à vista sua semblância gêmea de um passado que ainda não cessa de ecoar suas ladainhas, e que é tão velho quanto o projeto deste país, filho do acaso e do absurdo – e da escravidão, é claro. Todo o tímido avanço dos últimos anos no sentido de equilibrar o acesso à formação e à cultura – no horizonte da liberal igualdade de oportunidades – está claramente sob a ameaça dos nostálgicos da hierarquia social do Brasil Colônia que agora estão no comando e tilintam sua marcha fúnebre.
“Todo o tímido avanço dos últimos anos no sentido de equilibrar o acesso à formação e à cultura está claramente sob a ameaça dos nostálgicos da hierarquia social do Brasil Colônia que agora estão no comando”
Quem já ensinou em escolas privadas de alto desempenho para os de renda mais alta, como eu mesmo, sabe muito bem que o ministro da Educação pode fazer o que quiser da regulação do ensino médio que a elite econômica continuará a ter o ensino que sempre teve: tradicional, focado no conteúdo, amplo e às vezes até plural, com o dever precípuo de ocupar todo o tempo livre dos infantes. O próximo passo será possivelmente acabar com o caráter seletivo do exame nacional do ensino médio e alterar a legislação mediante alguma medida provisória para pressionar as universidades para retornar aos famigerados vestibulares, para alegria dos que vivem de sua indústria e das elites regionais – em Goiás, onde também já houve a “cota do boi” no vestibular, defendeu-se recentemente, com ampla ressonância nos meios de comunicação corporativos locais, que a Universidade Federal de Goiás estabelecesse cotas para os naturais destas paragens.
Os que agora estão à testa do poder político-institucional, cuja legitimidade está permanentemente posta em questão, têm faturas a pagar aos arautos opositores seletivos da corrupção que os apoiaram. No campo educacional, a fatura a ser paga é a do acesso à universidade. Todo o barulho em torno do ensino médio só é mais que cortina de fumaça porque está em jogo o futuro de muitos jovens que não poderão colocar entre si mesmos e a universidade apenas o hiato do desejo, do esforço e do mérito.
O golpe desferido contra o ensino médio tem em mira a universidade e o ensino médio público, e sua razão oculta, mas de sondagem não muito difícil, é a devolução da universidade à sua tarefa de legitimar posições na estratificação de classe e o retorno do ensino médio à sua tarefa de oferecer aos mais pobres uma fronteira socioeconômica para seu mérito educacional. Como disse em certa ocasião Millôr Fernandes, “temos um enorme passado pela frente”.
Esse texto diz exatamente o que gostaria de dizer e não consigo por falta de eloquência e conhecimento.
É muito triste tudo isso que estamos vivendo.