Em meio aos principais atores desse grande drama histórico que foi a Revolução Francesa (1789-1799) – como Robespierre, Danton, Marat, Saint-Just, Condorcet, Mirabeau, Luís XVI, Lafayette, dentre tantos outros –, a figura feminina de maior destaque, no imaginário público, desempenhou o papel de vilã. Maria Antonieta passou à história como uma mulher insensível e ardilosa, a madrasta má que desprezava o povo e conspirava contra a nação.
Não importa o que há de caricatural nessa caracterização da rainha que foi condenada à guilhotina, o fato é que a imagem emblemática de Maria Antonieta não só obscureceu a ação de outras mulheres no palco político da Revolução, mas também revestiu de um simbolismo fortemente negativo a atuação feminina na esfera pública. As maquinações da rainha configuravam-se como a prova manifesta de que o sexo “frágil” era pouco confiável e que por isso as mulheres deveriam ficar confinadas ao domínio doméstico.
No entanto, com ou sem a aprovação dos seus pares masculinos e mesmo relegadas a uma condição de inferioridade, sem acesso aos direitos políticos e, portanto, à cidadania, as mulheres foram à luta durante esse conturbado período da história da França. Alguns nomes se sobressaíram, como a escritora e jornalista Olympe de Gouges, uma militante da causa revolucionária que denunciou o machismo dos seus líderes e publicou, em 1791, a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã − sendo por isso considerada a precursora do feminismo francês −, além de ter defendido a abolição dos negros escravos.
Como tantas outras milhares de vítimas, Olympe foi executada na guilhotina, sob a acusação de traição, depois de ter se manifestado publicamente contra os massacres levados a cabo pela ditadura jacobina. Por ironia do destino, na justificativa da Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, Olympe fazia o seguinte questionamento: se podiam ser condenadas a morrer na guilhotina, por razões políticas, por que as mulheres não tinham o direito de ter voz na tribuna do parlamento?
Nascida de uma família nobre, Louise de Keralio foi outra ativista importante por sua atuação como redatora em órgãos da imprensa republicana. Já Madame de Roland – cujo destino também seria a guilhotina – ficou conhecida como uma espécie de musa dos patriotas republicanos: seu salão era frequentado por vários líderes revolucionários e foi palco de grandes decisões políticas.
Théroigne de Méricourt foi, por sua vez, uma das representantes mais destacadas de um movimento radical de mulheres parisienses que pretendiam formar uma guarda nacional feminina e chegaram a apresentar uma petição nesse sentido à Assembleia Nacional. Théroigne costumava se vestir como guerreira e tinha como projeto formar uma legião de amazonas francesas, conclamando as suas compatriotas que também tomassem as armas, como os homens.
Mas a participação feminina na Revolução de 1789 não se limitou às mulheres cultas e intelectuais, provenientes da nobreza e da burguesia. Uma multidão anônima de mulheres do povo também teve uma atuação decisiva em momentos cruciais do movimento revolucionário que aboliu a ordem feudal na França. Um dos mais emblemáticos foi a célebre jornada de 5 e 6 de outubro de 1789, quando as parisienses das classes populares se mobilizaram para protestar contra a falta de pão e marcharam em direção ao palácio real de Versalhes para solicitar uma audiência com o rei Luís XVI.
As reivindicações dessas trabalhadoras e mães de família não eram apenas de cunho social – durante o trajeto, elas também faziam com que todos que cruzassem seu caminho colocassem em suas vestimentas a insígnia tricolor (azul, vermelho e branco) que era o emblema da Revolução, demonstrando uma forte consciência política em relação à importância do movimento revolucionário. O gesto também representava um claro confronto a Maria Antonieta, que num jantar com oficiais militares em Versalhes dias antes convenceu-os a arrancar de seus uniformes o símbolo da Revolução e trocá-lo pelo distintivo azul e branco que representava a monarquia, numa atitude abertamente provocadora e antirrevolucionária.
A marcha das “mulheres de Paris”, como a celebrou o grande historiador Jules Michelet, foi o estopim de uma enorme mobilização popular que terminou por obrigar o rei Luís XVI a assinar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão aprovada pela Assembleia Nacional – o que ele vinha se recusando a fazer. Pressionado pela multidão comandada pelas mulheres, o rei também se viu coagido a abandonar seu castelo em Versalhes − que tinha se tornado a sede da monarquia desde o reinado de Luís XIV, o Rei Sol − e transferir-se, junto com o resto da corte, para Paris, a fim de tentar apaziguar os ânimos da massa rebelada.
(Nesse momento da Revolução, o povo ainda guardava uma grande consideração pelo rei Luís XVI, tanto que o anúncio de que ele iria se instalar no palácio das Tulherias, em Paris, foi recebido com êxtase pela multidão, em especial pelas mulheres, que celebraram a notícia como o retorno do bon papa (o bom papai) a sua casa. O mesmo não se pode dizer de Maria Antonieta – nestes dias tensos do início de outubro de 1789, ela por pouco não foi assassinada por uma turba de homens e mulheres que conseguiu entrar nos aposentos da rainha em Versalhes. No entanto, esse amor do povo pelo seu rei se converteria em ódio nos meses seguintes, com a disseminação da suspeita de que ele e sua mulher conspiravam contra a nação, materializada pelo episódio desastrado da fuga da família real para Varennes, em junho de 1791. Como se sabe, Luís XVI e Maria Antonieta, após a proclamação da República, em 1792, morreriam na guilhotina, sob os aplausos da multidão – a maioria, frise-se, composta de mulheres que criaram uma espécie de “culto da Santa Guilhotina” e organizavam-se em massa para assistir à execução dos “inimigos do povo”.)
Na capital e no campo, as mulheres também se organizaram em sociedades e clubes femininos, que tinham como objetivo elaborar um programa de educação republicana para as crianças, disseminar as virtudes cívicas, realizar missões filantrópicas, como socorro aos pobres e aos soldados feridos na guerra, entre outras atividades. Também eram presença marcante nas galerias da Assembleia Nacional em Paris, durante suas acaloradas sessões. Há registro, inclusive, de mulheres que se engajaram como soldado durante as guerras da França revolucionária, algumas delas se passando por homens – a mais famosa, Félicité Duquet, conseguiu o reconhecimento dos camaradas nos campos de batalha pelos seus atos de bravura.
Nos momentos de maior radicalização do movimento revolucionário, como na chamada Grande Peur (o grande medo), ocorrida nos dias que se seguiram à Queda da Bastilha em 1789, quando os castelos dos nobres por toda a França foram invadidos, saqueados e queimados por camponeses em fúria contra os desmandos da aristocracia, as mulheres tiveram participação maciça. E elas também exerceram o papel de agentes da política repressiva dos comitês revolucionários – desmascarando e denunciando os “inimigos do povo” − durante o Terror, o período mais sanguinário da Revolução Francesa, de 1792 a 1794, quando o tribunal revolucionário comandado pelos jacobinos, sob a liderança de Robespierre, condenou milhares de pessoas à guilhotina.
Aliás, foi nesse período da república jacobina que um ato protagonizado por mulheres entrou para a história pelo seu simbolismo. Durante o mês de novembro de 1793, uma das sessões da Assembleia Nacional foi interrompida por um cortejo de moças vestidas de branco, com uma faixa com as cores da Revolução amarrada à cintura e os cabelos enfeitados com flores. Depois delas, surgia uma belíssima mulher – cujo nome nunca se descobriu – sentada sobre uma poltrona que era carregada por quatro homens e que portava um manto branco e uma faixa nos cabelos na qual se lia a palavra “Liberdade”. A beldade representava a “deusa da Razão” – cujo culto foi uma tentativa dos revolucionários para inaugurar uma nova era inteiramente secular, livre das superstições religiosas e iluminada pelas luzes da razão humana – e sua aparição deixou os parlamentares e os populares que ocupavam as galerias comovidos e depois exaltados. Foi a senha para uma nova onda anticlerical que se renovava desde o início da Revolução – é bom lembrar que a Igreja, junto com os nobres, também vivia às custas da infinidade de taxas e outras obrigações que cobravam do povo – e que resultou no fechamento de templos católicos e a destruição de símbolos religiosos, associados à opressão e ao atraso.
Por outro lado, da mesma forma que muitas mulheres tiveram uma presença significativa no movimento revolucionário, outras tantas – pertencentes igualmente às classes populares quanto à burguesia e à nobreza – alinharam-se às forças contrarrevolucionárias. O grande movimento antirrevolucionário impulsionado pela Igreja Católica, sobretudo nas regiões da província francesa, também encontrou nas mulheres um forte apoio – convencidas pelos padres de suas comunidades que a Revolução violava os princípios sagrados da religião, muitas delas cometeram atos de violência contra patriotas republicanos.
Uma das figuras mais controversas dentre essas mulheres que tiveram um papel contrarrevolucionário foi, sem dúvida, Charlotte Corday. Descendente de uma família nobre, mas empobrecida, da Normandia, ela era entusiasta dos ideais iluministas que moveram a luta revolucionária e proclamava-se uma republicana convicta. Mas ficou a tal ponto horrorizada com os excessos do período do Terror na França que, para vingar o sangue das muitas vítimas que viu sendo executadas na guilhotina, tomou uma decisão extrema: matou com uma facada no coração o jornalista e parlamentar Marat, um dos mais radicais líderes republicanos e editor do jornal Ami du Peuple (Amigo do Povo), conhecido pela sua virulência e incitação à violência contra os “inimigos” da Revolução. Marat, que sofria de uma doença de pele e, por conta disso, passava horas imerso numa banheira para se tratar, foi morto por Charlotte nessa condição indefesa. A cena do assassinato de Marat inspirou muitos artistas – mas nenhum deles foi capaz de captar o sentido trágico dessa morte como David, na sua famosa tela Marat Assassiné. Charlotte, por sua vez, foi condenada à guilhotina pelo crime.
Desde os primeiros atos da Revolução Francesa, a emancipação feminina encontrou aliados entre algumas lideranças revolucionárias masculinas. Um deles foi Condorcet, favorável à concessão dos direitos de cidadania às mulheres, sob o argumento de que qualquer discriminação em relação ao sexo feminino no campo político era um “ato de tirania”. No entanto, em conformidade com a mentalidade burguesa da grande maioria dos partidários da Revolução à época, Condorcet defendia o direito de voto somente às mulheres que fossem proprietárias e chefes de família – à semelhança do que era exigido dos homens, já que o status de cidadão “ativo”, ou seja, que podia votar e ser votado, só era conferido a quem tivesse propriedade e pagasse um determinado montante em tributos (o famoso voto censitário). Essa restrição da cidadania aos proprietários convertia em cidadãos de segunda classe a grande massa do povo francês, que só contava com sua força de trabalho.
Mas Condorcet representava uma minoria entre seus pares no que dizia respeito ao papel das mulheres no campo político. Mesmo no momento de maior ativismo feminino, de 1790 a 1793, quando, após a proclamação da República, elas conseguem que sua cidadania seja reconhecida, esse status de “cidadã” não é pleno: o sufrágio universal implementado na constituição republicana continua mantendo o direito de voto como um privilégio masculino. Na cabeça da maior parte dos homens engajados na luta, às mulheres cabia cuidar da educação dos filhos dentro do ideal revolucionário – elas contribuiriam para a criação de um novo mundo à medida que fossem as mães das “futuras gerações regeneradas”. O lugar da mulher, portanto, permanecia sendo o lar doméstico.
No entanto, apesar das limitações, é inegável que a atuação das mulheres na Revolução Francesa teve uma grande repercussão no movimento pela emancipação feminina, o qual ganharia força ao longo do século XIX e começaria a alcançar seus primeiros frutos no início do século XX. E até os dias de hoje, a trajetória de personalidades como Olympe de Gouges e Théroigne de Méricourt, além das muitas mulheres do povo que permaneceram anônimas, mas que se engajaram ativamente para a instauração de uma nova era de igualdade e liberdade na França, deve permanecer na memória, como exemplo de que, mesmo nas situações de mais profunda desigualdade, as mulheres podem ter um papel decisivo na esfera pública.
Fontes
“L’Action Politique des Femmes pendant la Révolution Française”, de Jacques Guilhaumou e Martine Lapied. In: Encyclopédie Politique et Historique des Femmes (organização de Christine Fauré). Paris: PUF, 1997.
Histoire de la Révolution française I, vol. 1, de Jules Michelet. Paris: Folio, 2007.