Em 19 de novembro de 1967, três dias após tomar posse de uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, o médico, diplomata e escritor João Guimarães Rosa sentiu uma forte dor no peito. Morreu de um enfarte fulminante em seu apartamento no Rio de Janeiro já celebrado como um dos autores mais geniais que o Brasil produzira. Traduzido em vários idiomas, figurava entre os possíveis ganhadores de um Nobel de Literatura. Com obras como Grande Sertão: Veredas, Sagarana e a trilogia que forma o monumental Corpo de Baile, ele estabeleceu novos parâmetros para nossa literatura, fez de sua prosa uma poesia do sertão, filosofou sobre os dilemas universais de gente de um Brasil profundo, revelou paisagens, dramas, criou universos e rompeu estereótipos.
Nos 50 anos da morte do mais influente, complexo e revolucionário escritor brasileiro do século 20, Ermira convida seus leitores a um mergulho, ainda que breve, na literatura roseana por meio de passagens e temas de seus livros. Venha conosco nessa viagem por um sertão profundo, por um imaginário rico, belo e selvagem, por uma linguagem surpreendente, ao mesmo tempo erudita e popular. É Rosa falando por meio de seus personagens encantados e seus narradores hipnóticos.
O homem que maneja palavras
“Como é que vou dizer ao senhor? Os cabelos pretos, anelados? O chapéu bonito? Ele era um homem. Liso bonito. Nem tinha mais outra coisa em que se reparar. A gente olhava, sem pousar os olhos. A gente tinha até medo de que, com tanta aspereza da vida, do serão, machucasse aquele homem maior, ferisse, cortasse. E, quando ele saía, o que ficava mais, na gente, como agrado em lembrança, era a voz. Uma voz sem pingo de dúvida, nem tristeza. Uma voz que continuava.”
Grande Sertão: Veredas
A poesia do sertão
“Mas estes versos não cantei para ninguém ouvir, não valesse a pena. Nem eles me deram refrigério. Acho que porque eu mesmo tinha inventado o inteiro deles. A virtude que tivessem que ter, deu de se recolher de novo em mim, a modo que o truso dum gado mal saído, que em sustos se revolta para o curral, e na estreitez da porteira embola e rela. Sentimento que não espairo; pois eu mesmo nem acerto com o mote disso – o que queria e o que não queria, estória sem final. O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”
Grande Sertão: Veredas
O narrar único
“De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe.”
Grande Sertão: Veredas
Os sentimentos profundos
“Aí dele me lembrei, na hora: e esse Hermógenes eu odiasse! Só o denunciar dum rancor – mas como lei minha entranhada, costume quieto definitivo, dos cavos do continuado que tem na gente. Era feito um nojo, por ser. Nem, por meu juízo, para essa aversão não carecia de compor explicação e causa, mas era assim, eu era assim. Que ódio é aquele que não carece de nenhuma razão? Do que acho, para responder ao senhor: a ofensa passada se perdoa; mas, como é que a gente pode remitir inimizade ou agravo que ainda é já por vir e nem se sabe? Isso eu pressentia. Juro de ser. Ah, eu.”
Grande Sertão: Veredas
Os amores proibidos
“Acertei minha ideia: eu não podia, por lei de rei, admitir o extrato daquilo. Ia, por paz de honra e tenência, sacar esquecimento daquilo de mim. Se não, pudesse não, ah, mas então eu devia de quebrar o morro: acabar comigo! – com uma bala no lado de minha cabeça, eu num átimo punha barra em tudo.”
Grande Sertão: Veredas
O chapadão
“Assim expresso, chapadão voante. O chapadão é sozinho – a largueza. O sol. O céu de não se querer ver. O verde carteado do grameal. As duras areias. As arvorezinhas ruim-inhas de minhas. A diversos que passavam abandoados de araras – araral – conversantes. Aviavam vir os periquitos, com o canto-clim. Ali chovia? Chove – e não encharca poça, não rola enxurrada, não produz lama: a chuva inteira se soverte em minuto terra a fundo, feito um azeitezinho entrador. O chão endurecia cedo, esse rareamento de águas. O fevereiro feito. Chapadão, chapadão, chapadão.”
Grande Sertão: Veredas
O diabo nas veredas
“Ele tinha que vir, se existisse. Naquela hora, existia. Tinha de vir, demorão ou jajão. Mas, em que formas? Chão de encruzilhada é posse dele, espojeiro de bestas na poeira rolarem. De repente, com um catrapuz de sinal, ou momenteiro com o silêncio das astúcias, ele podia se surgir para mim. Feito o Bode-Preto? O Morcegão? O Xu? E de um lugar – tão longe e perto de mim, das reformas do Inferno – ele já devia de estar me vigiando, o cão que me fareja.”
Grande Sertão: Veredas
O ciúme dos homens e dos bichos
“O que era o que não era? Ao então, um touro que está separando uma vaca no calor – simples se só desconfia de outro touro perto, parte de lá, urra, avançando para matar, com uma fúria definitiva do demônio… A próprio, competia? Tanto que o meu, o teu.”
Dão-Lalalão, Corpo de Baile
Os seres épicos do sertão
“Só o soamento em falso, fantasia de tantas palavras, que neblina, que nem restos – e o buriti grande não era aquilo. Estava sendo ele mesmo, em-pé, um peso, um lugar preenchido, o formato. A gente queria e temia entendê-lo, e contra aquele ser apanha uma trincheira de imagens e lembranças.”
Buriti, Corpo de Baile
Os animais como gente
“O cachorro Gigão caminhava para a cozinha, devagaroso, cabeçudo, ele tinha sempre a cara fechada, era todo grosso. Ninguém não tocava o Gigão para fora de dentro de casa, porque o pai dizia: – ‘Ele salvou a vida de todos!’ –; dormia no pé da porta do quarto, uma noite latiu acordando o mundo, uma cobra enorme tinha entrado, uma urutú, o pai matou.”
Campo Geral, Corpo de Baile
O gado companheiro
“Passa rente aos bois-de-carro – pesados eunucos de argolas nos chifres, que remastigam, subalternos, como se cada um trouxesse ainda os pescoço a canga, e que mesmo disjungidos se mantêm paralelos, dois a dois. Corta ao meio o grupo de vacas leiteira, já ordenhadas, tranquilas, com as crias ao pé.”
O Burrinho Pedrês, Sagarana
Mundo de homens fortes
“Mas Nhô Augusto era couro ainda por curtir, e para quem não sai, em tempo, de cima da linha, até apito de trem é mau agouro. Demais, quando um tem que pagar o gasto, desembesta até o fim. E, desse jeito, achou que não era hora para ponderados pensamentos.”
A Hora e a Vez de Augusto Matraga, Sagarana
Paisagens humanas do sertão
“À tarde do dia, ali o grau de tudo se exagerava. A choça. O pátio, varrido. O dono, cicatriz na testa, sentado num toro, espiando seus onceiros: cachorro de latido fino, cachorra com eventração. Era um velho de rosto já imposto; já branqueava a barba.”
No Prosseguir, Tutaméia
A vida dolorida
“Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio – pondo perpétuo. Eu sofria já o começo da velhice – esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais.”
A Terceira Margem do Rio, Primeiras Estórias
Sua excelência, a onça
“Cachacinha gostosa! Gosto de bochechar com ela, beber despois. Hum-hum. Ããã… Aqui, roda a roda, só tem eu e onça. O resto é comida pra nós. Onça, elas também sabem de muita coisa. Tem coisas que ela vê, e a gente vê não, não pode. Ih! tanta coisa… Gosto de saber muita coisa não, cabeça minha pega a doer. Sei só o que onça sabe. Mas, isso, eu sei, tudo. Apredi.”
Meu Tio o Iauaretê, Estas Estórias
Sua excelência, Manuelzão
“Manuelzão havia de andar. Vigiar o volume todo da festa, os contornos. Ia até lá na chã, acabar de visitar a mãe, aquele dia, no cemiteriozinho, só? Passava de hora, e era longe, e sobressaía tristeza. Mas atravessou um curral, ia em direito. No nascente, se via do cerrado das Pedras, batido de sol: mas depressa vinha se estreitando a parte ensolada, amarela, bela.”
Uma Estória de Amor, Corpo de Baile
Os cenários sertanejos
“Serra do Sõe, verde em sua neblina, nesse frio fiel, que inclina os pássaros. Serra do Sõe e Serra da Maria-Pinta, que a redobra; serras e pessoas.”
Melim-Meloso, Tutaméia