Este texto foi e voltou. Quando achava que estava quase pronto, eis que alguma coisa nova surgia e o derrubava. Primeiramente eu queria abordar a ladeira íngreme que estamos descendo enquanto sociedade, mas os fatos se acumularam em uma velocidade tão intensa que ficou difícil tratar disso nesse enfoque específico. Depois, pensei em voltar a reflexão para a violência, mas a morte da vereadora Marielle Franco alterou novamente a rota. E quando pensei que as tragédias sucessivas que nos acometem já eram mais que o bastante para nos deprimir, eis que outros assassinatos, os de reputações, começam a ser perpetrados por pessoas ditas “de bem”.
As informações falsas que infestaram as redes sociais sobre a vereadora executada a sangue frio e em torno de mais fatos que cercaram essa e outras mortes absurdas não se limitaram ao ambiente virtual, à irresponsabilidade de perfis que têm pouco potencial de causar estragos. Tiveram reflexos na vida tangível e pessoas que deveriam ser de referência – afinal, uma desembargadora e um deputado federal, bem ou mal, representam dois dos três poderes constituídos da nação – engrossaram as fileiras da calúnia, da infâmia e da covardia ao divulgarem dados falsos. Postagens que alcançaram milhares de compartilhamentos, que agrediram a verdade, vilipendiaram um cadáver e demonstraram até onde podemos chegar com estereótipos que criamos, com os preconceitos que alimentamos.
“E quando pensei que as tragédias sucessivas que nos acometem já eram mais que o bastante para nos deprimir, eis que outros assassinatos, os de reputações, começam a ser perpetrados por pessoas ditas “de bem”.”
Essa ausência de solidariedade e empatia, essa ânsia em denegrir a honra alheia, esse afã em destruir biografias não são as causas do momento delicado e horroroso que vivemos. Na verdade, tais comportamentos desprezíveis e irresponsáveis são sintomas de uma organização social que emite provas de que faliu. A democracia brasileira está em frangalhos em diversos aspectos. As discriminações de classe, de cor, de gênero, de credo e até étnica galopam como se fossem virtudes e até os constrangimentos em expressá-las vêm sendo revogados. A ignorância não só é fomentada, mas elogiada. Há quem prefira a falsidade, desde que ela esteja mais próxima ao seu próprio pensamento do que a verdade.
E assim descambamos descontroladamente. Ações contra criminosos são necessárias e é impossível continuar a conviver com tal estado de violência, mas no Brasil apagamos o incêndio sem percebermos que, fazendo apenas isso, estamos riscando o próximo fósforo. Sem políticas mais amplas de inclusão, sem a consciência de que estamos todos ligados em uma sociedade que precisa dialogar para resolver seus problemas, sem que possamos nos reconhecer no outro independente da cor da pele ou do ganho salarial de cada um, vamos continuar a enxugar gelo. As respostas que os governos têm dado no decorrer da história são tão violentas quanto o mal que se pretende combater. E assim, temos uma guerra, em que morrem ativistas, policiais, crianças de um ano de idade.
“Convivemos com pessoas cuja miopia não tem limites. Pessoas que não conseguem, sequer, vislumbrar o bom senso. Pessoas que acreditam não só na mentiras que propagam, mas nas mentiras que são.”
A morte da vereadora carioca Marielle Franco não tem uma importância maior ou menor que milhares de outras que ocorrem no Brasil todos os anos. Ela é, sim, mais simbólica por ser uma voz das periferias que conseguiu ascender a um posto incomum para sua condição social. E uma voz que tentava, de algum modo, mudar um estado de coisas que ela sabia que perpetuam os piores males. A reação de parcelas da sociedade, que despejaram seus ódios ancestrais contra sua memória, é, por outro lado, reveladora. Convivemos com pessoas cuja miopia não tem limites. Pessoas que não conseguem, sequer, vislumbrar o bom senso. Pessoas que acreditam não só na mentiras que propagam, mas nas mentiras que são.
Os últimos tempos no Brasil têm se mostrado especialmente difíceis. Vivemos sob constante agressão. São tapas, socos, tiros em nossa civilidade, em nossa esperança, em nossa vontade. Não sei que tiro foi esse. Sei que ele nos atingiu a todos. Mesmo aqueles que se comprazem a odiar os outros na internet e se ocupam em divulgar notícias falsas por aí, mesmo estes foram atingidos. Eles podem não ter percebido ainda, mas foram. Afinal, estamos todos juntos nesse naufrágio coletivo em que o Brasil se transformou.