“Era a descoberta do que é possível na não ficção, no jornalismo, usar qualquer recurso literário, dos dialogismos tradicionais do ensaio ao fluxo de consciência, e usar muitos tipos diferentes ao mesmo tempo, ou dentro de um espaço relativamente curto… para excitar tanto intelectual como emocionalmente o leitor.” Quando escreveu seu famoso ensaio O Novo Jornalismo, em que comenta algumas das reportagens literárias escritas nos anos 1960 e 1970, o escritor Tom Wolfe revela suas virtudes e suas fraquezas. Por essa transparência, é um texto fundamental.
A morte do autor no último dia 15 de maio deixa na figura de Gay Talese o último remanescente de uma geração que ousou muito mais que várias outras, que exerceu influência no jornalismo de várias partes do mundo (incluindo o Brasil) e que teve a capacidade de criar lendas, algumas pertinentes, outras nem tanto. Tom Wolfe era um dos maiores responsáveis por amadurecer esse debate, já que foi o único a teorizar com mais vagar a respeito das razões e dos procedimentos de se misturar o discurso informativo com o estético, o jornalismo com a literatura. Mistura apimentada.
Veículos de comunicação dos EUA, sobretudo as revistas The New Yorker, Enquirer e Harper’s Bazaar, abriram, em diferentes momentos, espaços nobres para tais experimentações discursivas, reportagens especiais escritas por jornalistas de tarimba e escritores de ficção que transitavam nos dois terrenos. O resultado foi um movimento poderoso que se não chegou a alterar os parâmetros tradicionais da imprensa como um todo, inoculou um saudável vírus de inquietação em meio a matérias padronizadas, uniformes e quase sempre amedrontadas quanto a novidades formais.
Esse movimento teve seu ápice nos anos 1960, quando foram publicadas grandes reportagens antológicas e perfis inigualáveis. Basta lembrar do clássico do gênero A Sangue Frio, do desaforado e temperamental Truman Capote, que narrava a chacina de uma família no interior dos EUA, e o inigualável texto Frank Sinatra Está Resfriado, do elegante e obstinado Gay Talese, em que traça os contornos psicológicos do cantor sem sequer entrevistá-lo. Tom Wolfe estava no olho desse furacão, rivalizando ou apoiando colegas que enveredavam pelo mesmo caminho.
Com sua postura combativa, Wolfe nos entregou reportagens nada menos que sensacionais. Radical Chic, em que descreve o eclético encontro do maestro Leonard Bernstein com membros do grupo Panteras Negras, enfatizando as diferenças sociais, ideológicas, de mentalidade entre eles, é formidável. Para se ter uma ideia, o relato, que envolve a nata da elite de Nova York e pessoas que combatiam exatamente esse estilo de vida, começa com a descrição de um sonho do maestro. E a partir daí, os pensamentos dos personagens são explorados à exaustão.
Esta, aliás, era uma das marcas dos texto de Wolfe. Ele apostava alto nos fluxos de consciência, o que suscitou muitos questionamentos de colegas que duvidavam da pertinência de tal recurso. Como um repórter poderia se arvorar a capacidade de adivinhar o que se passava pela cabeça dos envolvidos nas reportagens? Tom Wolfe se defendia dizendo que conseguia fazer isso após uma observação detida de gestos e palavras, dos relatos pessoais que conseguia, das deduções legítimas que aferia a partir do que havia apurado e não inventado.
Ele também surpreendia na linguagem, reproduzindo no texto as gírias, os vícios de linguagem, as expressões de cada entrevistado, por mais estranhas que pudessem ser. Quando escreve sobre o universo das corridas de carro que movimentam o interior dos EUA na reportagem O Último Herói Americano, Wolfe não se faz de rogado e entra no clima daqueles homens cheios de adrenalina e que parecem não ter medo da morte. Um espetáculo narrado do ponto de vista de um repórter que se surpreende com o que vê e de um espectador que se diverte com o que faz.
Na lendária matéria O Teste do Ácido do Refresco Elétrico, publicada no icônico ano de 1968, Tom Wolfe mergulha fundo – quase que literalmente – em um momento de revolução de costumes, em que sexo, drogas e rock’n roll ditavam o comportamento de parte expressiva da juventude de então. Para compreender melhor o que fazia, o autor entrega-se à atmosfera criada por Ken Kensey, o guru do LSD, e escreve um texto de teor pessoal sobre a substância alucinógena, a cultura hippie, a revolução sexual. Uma aula do chamado Jornalismo Gonzo.
Tom Wolfe gostava de alternar seus trabalhos no jornalismo e na ficção, provocando seus críticos ao mesclar uma e outra propositadamente, enfatizando o quanto essas fronteiras podem ser tênues. No romance A Fogueira das Vaidades, que depois ganhou uma adaptação para o cinema com elenco estelar que incluía nomes como Tom Hanks e Bruce Willis, ele elabora um enredo em que anti-heróis emblemáticos da cultura de Nova York desfilam em situações degradantes disfarçadas de sucesso. O mote de tudo é a vaidade. Muitos vestiram, com razão, aquela carapuça.
Todos esses trabalhos reservam para Tom Wolfe um dos mais altos postos quando falamos de Jornalismo Literário e, sobretudo, em Novo Jornalismo norte-americano. Isso, porém, não nos autoriza a referendar o que as afirmações do autor a respeito tinham de exagero. Tom Wolfe escreve como se sua geração tivesse, literalmente, inventado a roda desse encontro discursivo. Não é bem assim. Mesmo seu colega e amigo Gay Talese escreveu que dar a essa geração tal papel de pioneirismo era uma incorreção, citando Ernest Heminwgay, entre outros, como precursores.
Essa fogueira das vaidades que Tom Wolfe, a seu modo, ajudou a alimentar acerca de tal tema específico é, talvez, o maior pecado do autor. Os anos 1960 e 1970, que também trouxeram ao público autores do quilate de Hunter Thompson, que escreveu o emblemático Medo e Delírio em Las Vegas, e Norman Mailer, com seu magistral A Luta, marcam um momento especial do Jornalismo Literário, mas que está longe de ser o primeiro deles. Esta é uma imprecisão fácil de dirimir, fazendo meras consultas sobre a publicação de reportagens e livros igualmente fundamentais.
Sem falar de autores que atuaram simultaneamente na imprensa e na literatura no século 19 (Balzac, Dickens, Dostoiévski e por aí vai), e nos atendo apenas à produção norte-americana, podem ser citados clássicos como Os Dez Dias que Abalaram o Mundo, de John Reed (1918); Tempo de Viver, de Hemingway (1935); Hiroshima, de John Hersey (1946); Filme, de Lilian Ross (1952). Podemos lembrar ainda que Os Sertões, de Euclides da Cunha, é de 1902; que Antônio Callado escreveu O Esqueleto na Lagoa Verde em 1953, e que Gabriel García Márquez produziu o espantoso O Relato de um Náufrago em 1955.
Sim, nessa Tom Wolfe não pode ser defendido. Isso, porém, não causa o mais leve arranhão no legado que o escritor deixou. Com sua fala mansa, seu jeito dândi de ser, suas roupas impecáveis, ele era um daqueles jornalistas à moda antiga, em que a qualidade do texto, a preocupação com os dados e o olhar curioso e espirituoso se unem na direção de um mesmo objetivo. Seus trabalhos são uma referência em vários sentidos. Se não inventou tanto quanto acreditava ter inventado, Tom Wolfe ousou como poucos se atreveram a ousar.