O homem urbano perdeu o hábito de caminhar? Quase. Há fortes indícios. Prova disso são as modas de cuidar do corpo, os intensos exercícios físicos, a volta à natureza, a promessa de saúde e as advertências dos ortopedistas que apontam como uma das causas dos males da coluna a posição forçada do sentar-se ao volante.
Mas andar a pé não é novidade, por exemplo, para os romeiros brasileiros. Nossos peregrinos percorrem léguas e léguas, vindos da caatinga para as festas do Padim Ciço, entre outros, como os do Divino Pai Eterno da goiana Trindade.
Os bandeirantes, ao que se sabe, andaram a pé, assim como os voluntários da Coluna Prestes. Há muito que os psiquiatras e psicólogos reconhecem no deambulismo uma forma de o louco reduzir suas angústias devastadoras: andar é elaborar temores, ansiedades e fantasias. Andarilhos inspiram. De Guimarães Rosa a psiquiatras.
Andar pode ser passear, e logo, passeata. Há o risco de replay: se a moda pega … E se pegar, voltaremos aos tempos dos beatniks, com toda a ideologia de On the road, apesar de Kerouac ter chegado a ser um cidadão assentado na vida. Havia carro, mas também a pregação de ganhar a rua, símbolo até da vida, no Fellini de La Strada.
Sair, pôr o pé no mundo, foi o que propuseram os hippies, e toda a literatura épica, e toda a mitologia clássica, de Ulisses ao Édipo de pés inchados. Macunaíma sai a pé pelo Brasil. Conhece São Paulo, horroriza-se, habitua-se, desabitua-se, e volta às origens, de dentro da mata virgem.
Então, por que matar o índio? Pura inveja, confirma o sertanista Claudio Villas-Boas, exímio andarilho. Caminhando, propôs o compositor Geraldo Vandré. Foi censurado, e liberado.
E quem tem pé chato? Já não pôde prestar serviço militar, nem marchou com Deus pela liberdade, nem com os 100 mil, em plena Rio Branco, nem, mais recentemente, em plena Avenida Paulista para honra do Bezerro de Ouro da Fiesp, ou terá sido pelo proibidíssimo Orgulho Gay? Com algum sacrifício, poderá ter marchado pelo lazer em São Paulo, ou simplesmente caminhado, com as greves dos ônibus, dos táxis, dos caminhoneiros, a falta dos trens ( que irritam até o ponto de ebulição do quebra-quebra), para não perderem o dia de trabalho.
Andar a pé. Afinal, alguma vantagem haverá, para além dos assaltos, dos buracos nas ruas, dos bueiros destapados, das enchentes com dia, hora e mês agendados, das obras intermináveis, das construções feitas pelas milícias em pântanos, lixões e encostas.
Andar a pé é desviar, é saltar obstáculos, ter ginga e senso de equilíbrio. A promessa, talvez, é de uma vida mais amena. Os urbanistas, ao projetarem as ruas de pedestres (a proposta existe entre nós desde 1938, de autoria de Jerônimo Cavalcanti, ex-prefeito de Belém), acenaram com menos estresse.
Sem automóvel, desaparece o risco imediato de atropelamento. Não há mais a ininterrupta impaciência de parar obrigatoriamente para que o mais forte passe, na lei da selva. Haveria mais higiene, mais convívio, menos gases tóxicos derivados da combustão dos motores. Mas também menos liberdade de ir e vir mais longe.
Agora, há espaço de sobra. E o automóvel está devagar, quase parando, a pedir uma solução imaginativa, social, para um uso menos exclusivista. Numa palavra, o transporte de massa.
Crianças ocupam as praças centrais de Londres, a exigir das autoridades medidas urgentes para enfrentar as mudanças climáticas. Uma delas é recebida pelo Papa Francisco. Cotada para o Nobel da Paz. Crianças saem de casa, andam a pé nas ruas da velha Europa.
Doem-me os pés, de tanto não andar, poderia dizer de si o homem urbano.
O cérebro eletrônico comanda, manda e desmanda, ele é quem manda, mas ele não anda, dizia a inocente canção de Gilberto Gil. Pois não é que fizeram com que um tipo de cérebro eletrônico andasse, o celular, a prova viva de que é o rabo que abana o cachorro, e não o contrário.
Marchas, passeatas, procissões, carnavais, réveillons. Se ainda temos algo a chamar de humana natureza, se é que ela ainda existe, e se existiu algum dia, a descoberta do religare é que houve um caminhar. Do social ao social. Só compreensível pelo símbolo, de que somos feitos. O símbolo nos faz caminhantes.
Vem de longe. Do mito da horda. Da assunção da bipedia. Pagamos alto preço pela postura ereta. Nossa espinha, pobre menina rica. Troca do privilégio do olfato. Ênfase na visão. Do nariz, talvez a nostalgia pelo cheirar, pulsão olfativa, mortífera, pelas drogas. Visão como antecipação do gesto, do vulto, da sombra do inimigo. Paranoia, pra que te quero.
A meio caminho, hesitante, bamboleante, a criança aos 18 meses ensaia a postura ereta na fase, no estádio do espelho. Mal dispõe de controle motor e já caminha, jubilosa, em direção à sua imagem, que a mãe dirá que é sua. Ela caminha, triunfante, em direção ao seu futuro. Antecipa sua unidade corporal. Supera a vivência do corpo espedaçado. Transita do seu trem-fantasma, das angústias primordiais, dos desequilíbrios próprios ao desamparo inaugural que foi seu nascimento.
Dá os primeiros passos. Chega ao cúmulo de procurar alguém por detrás do espelho. Júbilo e depressão. O que tem de mais precioso – a Gestalt gloriosa – não pode pegar, não é dona de si. Não obstante, caminha. Como um Sísifo, vê que o resultado de sua laboriosa atividade – empurrar a pedra até o topo da montanha e vê-la rolar fora de controle por obra e graça de um punitivo e obscuro deus, e repetir, incansável a tarefa que é sua, a produção de sua humana existência – implica o caminhar como sentido da vida.
Falar sobre os primeiros passos pode nos dar prazer. Estão associados a um período de nossas vidas absolutamente decisivo. É na infância que se joga o jogo de vida ou morte, um terrível e, no mais das vezes, invisível combate entre as forças de Eros e Tânatos.
O bebê vai ou não sobreviver? Vai ou não escapar de insidiosas moléstias, escapar da passagem de um meio líquido para o meio aéreo, onde lhe custa respirar, quando respirar queima como brasa? O bebê vai escapar das forças de destruição que operam silenciosamente dentro de si? Vai escapar dos diversos contágios, das diversas contaminações que implica o simples ato de viver?
Vai escapar das diversas imperícias, dos cuidados iniciais, da infecção hospitalar, do excesso de carinho, vai escapar até mesmo de uma mãe insuficiente, ou suficiente demais? O fato é que aqui estamos – ainda – e se estamos, escapamos. Podemos, então, comemorar, lembrar juntos, celebrar.
Primeiros passos são sempre de ordem mítica. Quem pode garantir quais são os primeiríssimos passos de alguém, de um bebê, de um adulto no exercício de uma nova profissão, de um jovem que se encontra pela primeira vez com uma namorada?
Onde situar precisamente esse momento? Será que o primeiro passo não é, por sua vez, o resultado de uma longa cadeia, de uma longa série de acontecimentos que culminaram exatamente nele, no primeiro passo, tal como uma banda de Möebius, tornando indistintos o começo e o fim, o dentro e o fora, o íntimo e o êxtimo, a semente e a árvore, tal como na dialética de Hegel?
É assim que chegamos à ideia de que a criança é o pai do homem? Se for assim, então chegamos a um ponto culminante, posto desde o início: o jovem e o velho psicanalistas têm algo em comum, se são analistas: um não saber, uma abertura que leva ao novo, à criação. Podemos chamar esse ponto de douta ignorância e nos lembramos de Sócrates, chamado de “o primeiro analista” por Lacan. Mais uma vez, os extremos se tocam.
Como seriam os primeiros passos numa análise? Como seria uma análise em estado nascente? Quem dá os primeiros passos? Certamente que o chamado analisante. Certamente que o chamado analista.
Por mera convenção, podemos fixar um primeiro passo no menino que se descobre portando um pênis, que se movimenta à revelia, fica duro, coça, corpo estranho. O que é isso? Um protótipo daquilo que Freud chamaria de o “estranho familiar”, a inquietante estranheza de tão familiar e ao mesmo tempo incontrolável, indicando uma potência que vem de um Outro lugar, de uma Outra cena, sobre a qual não se tem comando algum?
Resta falar, dirigir a palavra a alguém. “Mãe, o que é isso?”, e notar, como um raio, o embaraço. O encontro com o sexo é sempre faltoso, como todos os encontros. Sempre traumático, o sexo. Já está na etimologia, sexo é corte, sexualidade é o que vem no lugar desse corte, dessa falta. Alguma coisa que vem no lugar de coisa alguma. Uma metáfora. Que nos institui no campo da linguagem, seres falantes, filhos do simbólico, com quem abrimos uma conta, uma dívida impagável, até porque não há quem a receba. Dinheiro na mão, vendaval, para ninguém. Um olho cego vagueia procurando por um, como na letra de Zé Ramalho, na letra de Sófocles com seu Édipo em Colona, como o coelho cego na estrada, puro olhar para nada. Olhar que nos olha.
Como não haver um testemunho para o não senso, para a primordial falta de sentido que, por acaso, é minha vida? Então, o que nos dá garantia de falar nos primeiros passos? Só pode ser a mera suposição de que estamos nos entendendo no mal-entendido. Quando supomos que a tais palavras correspondem tais significados assumidos por todos, ou pela maioria, outra ficção. Quem nos garante isso, algo que é de ordem extraordinariamente prática, a suposição da vida de todos os dias, o tecido de que é feito nosso cotidiano, só pode ser o que audaciosamente chamamos de “senso comum”. Que encontra suas raízes no que a psicanálise inscreve nos registros do falante – real, simbólico e imaginário.
Estamos, então, no ponto de partida para os primeiros passos. São João, que era escritor, dizia que “no princípio era o Verbo”, e depois aprendemos que o Verbo se fez carne. Goethe, por sua vez, pensou que “no princípio era a Ação”. Podemos aprender com eles, que lidavam com palavras, que o verbo é ação. A palavra põe em movimento, transmuta, transforma, altera, impede que o idêntico seja sempre idêntico a si mesmo. Um filósofo da linguagem, John Austin, também nos ensinou que dizer é fazer.
Um analista pode se interessar pelos primeiros passos. Surpreender a psicanálise em estado nascente, brotando das bocas das histéricas, deixando pra trás a medicina, inventando algo novo com a palavra, como testemunharam Breuer e Freud nos seus Estudos sobre a histeria num remoto 1895.
Nem tão remoto assim. Com outras palavras, em novas roupagens, o fenômeno se repete na sua singularidade, a cada sessão , a cada fala de analisante. Em estado nascente, o analista tenta surpreender pela escuta o momento em que o analisante se torna analista, mesmo que não exerça o ofício.
Andar a pé nos leva a outros passos. “Allez, circulez”, gritavam os tiras franceses quando, um dia, Glauber Rocha sentou-se para descansar nas calçadas de Paris. Ande, ande sempre, sem parar. Não suspeitavam do que viria depois. Diásporas, os grandes movimentos migratórios, as novas invasões bárbaras, a conta do colonialismo chegou.
Excelente! Caminhar é algo que faz bem ao corpo e muito mais bem ao espírito.