Nomes e vidas, como se a vida fosse apenas nomes, representações. No ato de nomear, ocorre um registro parcial de personalidades. Por esse caminho, pode-se entender a trajetória de Ricardo Correia Silva e Vânia Munhoz.
Batguél (forma abrasileirada de Batgirl), Fofão da Rua Augusta. Geralmente, os apelidos dados a Ricardo carregavam um peso pejorativo, por mais que ele ressignificasse essas alcunhas. Diferente de seu então namorado Vagner, depois de sua readequação de gênero, que adotou Vânia como nome – além de Kara, Babette, Vênus, Venúsia, Hara, codinomes no mundo do sexo na França.
No livro Ricardo e Vânia (O Maquiador, a Garota de Programa, o Silicone e Uma História de Amor), de Chico Felitti, lançado pela editora Todavia, todos esses nomes e apelidos funcionam como uma espécie de fio condutor da narrativa. Valendo-se do depoimento do próprio autor, mais várias pessoas entrevistadas, o livro narra a história de um dos profissionais da estética mais requisitados de São Paulo nos anos 1970 e 1980, que trabalhou em salões icônicos como Shirley´s e Casarão e acabou virando um morador em situação de rua, apesar de contar com duas heranças das quais nunca desfrutou.
Seguindo o fluxo das entrevistas, rompe-se a linearidade, o que torna a história mais atrativa, ainda que não perca a perícia da reportagem. Durante os 45 capítulos de curta extensão e todos substantivados, Chico Felitti vai mostrando Ricardo e Vânia em inúmeras etapas da vida de ambos. Em alguns momentos, o autor se pergunta dentro do próprio texto a respeito do processo de apuração e da escrita.
A partir de um túmulo sem nome, a narrativa inicia-se indagando quem fora enterrado ali. Nos primeiros capítulos, encontram-se os bastidores da reportagem “Fofão da Augusta? Quem me chama assim não me conhece”, assinada por Felitti, que viralizou na internet, publicada pelo portal BuzzFeed News. O personagem central, até aquele momento, era o famoso Fofão da Augusta, conhecido na região da Rua Augusta onde distribuía panfletos de teatro, e que estava internado no Hospital das Clínicas de São Paulo.
Curiosidade move o jornalismo. E levando à risca esse ditado, Chico Felitti, ao saber da internação da folclórica figura das ruas paulistanas cujo rosto fora desfigurado por aplicações de silicone e cuja real identidade era desconhecida, vai até ao hospital para visitar o paciente. Lá começa a perceber outras facetas do personagem, que sabia falar impecavelmente francês e inglês, além de um pouco de italiano. Depois de anos vivendo na rua, ele estava com a saúde muito debilitada e tinha episódios de esquizofrenia. Apesar de ser um tipo célebre na cidade, havia dificuldade de sua nomeação oficial pelos órgãos públicos.
Depois de seguir algumas pistas que ajudaram a jogar luz sobre o enigmático personagem internado no Hospital das Clínicas, Felitti, durante a narrativa sempre ao lado de sua mãe, Isabel Dias, também escritora, viaja para Araraquara, cidade no interior de São Paulo onde nasceu o ator e diretor de teatro Zé Celso, citado no livro. Lá, busca mais dados e uma certidão de nascimento para oficializar a internação de Ricardo Correia Silva, a identidade por trás da figura do Fofão.
Notoriedade
Ricardo e Vânia (O Maquiador, a Garota de Programa, o Silicone e Uma História de Amor) situa como Ricardo se tornou tão notório para depois ser abandonado e cair no esquecimento. Muitos anos antes de ganhar o apelido ofensivo de Fofão da Rua Augusta, nos anos 90, que inspirou até a criação da Comunidade do Orkut Fofão Sincero, ele também recebeu a alcunha pejorativa de Batguél, em Araraquara.
Junto à família Correa, Chico Felitti passa a descortinar pouco a pouco os caminhos percorridos por Ricardo. Após a transcrição de depoimentos de Marcelo Correa, Julio Correa, Flávio Correa, Alessandro Jamas, Carlos Antonio de Barros, Aline Prado, Neto Nigazz, entre outras fontes que contribuíram para reconstruir a trajetória do personagem, aparece um dos momentos chave do livro. É o encontro, depois de anos, de Ricardo e Vânia Munhoz, intermediado por Felitti. “Quando a ligação de vídeo termina, há duas trilhas de água que começam nos olhos de Ricardo e percorrem suas bochechas. Isabel sai do quarto para chorar no corredor. O homem da cama ao lado, que não queria saber da história de Ricardo, passa a mão no rosto enquanto olha a TV, ligada em um programa policial. Desconfio que ele também está chorando”, narra o autor na página 63.
Na sua trajetória efervescente, Vânia só abandonou o nome Vagner quando mudou-se para a França, fazendo manifestar sua transexualidade. Kara, Babette, Vênus, Venúsia, Hara, todos esses codinomes de Vânia revelam um pouco de Paris, onde viveu um tempo áureo em que os cifrões pareciam que não acabariam. Um detalhe irônico de sua vida na capital francesa é que o local onde ela recebia seus clientes foi em séculos anteriores um quarto de freira.
A narrativa atenta para entender a personagem, uma dançarina que se tornou garota de programa. Vânia fala também de seus outros namorados na Europa e de sua temporada em Araraquara ao lado de Ricardo, que causou uma verdadeira comoção na cidade ainda provinciana em relação à homossexualidade.
Ainda que de forma menos traumática que Ricardo, Vânia também desfigurou seu rosto com silicone nos anos 80 e passou por um verdadeiro tormento para recuperar seus traços. O impulso para se submeter a essa experiência desastrada foi despertado pela visão de bonecas chinesas, em uma feira do Bexiga, além da vontade que Ricardo e Vagner alimentavam de ficarem mais parecidos um com outro. Os percursos de Vânia incluem também um casamento de fachada para conseguir a cidadania francesa e uma passagem pelo sistema penitenciário local, numa descrição salpicada com termos do pajubá e até com uma menção a Aurélia: A Discionária da Língua Afiada, de Vitor Angelo e Fredi Libi, uma das primeiras publicações dedicadas à linguagem da comunidade LGBTQ no Brasil.
Do lado junkie de Ricardo, passando por sua faceta mais triste na rua, do ainda Vagner tentando entender sua autoimagem, até a Vânia que se tornou vedete e depois garota de programa em Paris. O livro Ricardo e Vânia (O Maquiador, a Garota de Programa, o Silicone e Uma História de Amor) aproxima Ricardo, Vânia e o próprio ato de reportar do escritor-jornalista. O volume traz um acervo fotográfico vital para entender as mudanças corporais do casal nos anos 80 – procura de identidades tanto pessoais como sociais. Terminada a leitura, fica-se com a impressão que na vida tudo é como uma dança de nomes e seus significados, a exemplo do que ocorreu com a antiga boate Glória, que recebeu Ricardo como host na festa Vai!, lugar que outrora foi uma igreja.
Livro: Ricardo e Vânia
Autor: Chico Felitti
Editora: Todavia
Páginas: 189
Preço: R$ 54,90